sábado, 11 de julho de 2015

[Conto] 'Ãmuru


Conto que demorooooou pra sair - embróglios com tupi antigo e derivados - mas espero que gostem o/

Um conto sobre as selvas do sul de Aera, sobre vingança e maldição.

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'Ãmuru
(do universo de Aera, o mundo dos deuses-ventos)
(histórias de
Ka'aretama, as selvas do Sul)


1. Rebatismo

A coruja suindara piou numa árvore próxima, chamando os ventos da morte, e meu inimigo sabia que eles logo viriam.

– Fale! – sussurrei, com minha faca de bronze colada em sua garganta – fale agora ou vou marcar seu cadáver e amaldiçoar seu espírito a vagar pelos vales escuros deste mundo.

– Você... você não tem esse poder! – balbuciou ele, mas eu podia ver o medo em seus olhos. Imobilizado no chão, encontrei esse desgraçado rondando próximo de minha antigataba, agora destroçada e em chamas, onde os corpos de meus companheiros, eu bem sabia, jaziam mortos.

Ele vinha armado com as penas negras e fulvas da nação guerreira jagüapy, o que significava que, se o dominei facilmente, foi porque as sombras me protegeram. Eu não teria tanta sorte contra um grupo inteiro.

Não havia tempo. Aproximei meu rosto do desgraçado e exibi a cor dos meus olhos, minha primeira maldição. A mata estava escura, mas a luz do incêndio de minha aldeia seria suficiente.

Kuapareté! – ganiu ele, clamando o nome de meus antepassados, ao notar o brilho dourado de meus olhos. Herança maldita de meu sangue.

– Sim, e como tal guardo segredos escuros demais para esta era. Se quiser que seu espírito encontre a brisa da morte e tenha paz, me diga por que infernosnos atacaram!

– Então era verdade! – ele disse, e cuspiu em meu rosto – Abaeté nos disse que encontraríamos um sangue-maldito nesta taba, e que somente a sua cabeça numa estaca traria os bandos de caça de volta! Você vai pagar por existir, maldito kuapar...

Corto sua garganta e silencio suas injúrias. Então eu fui a causa da morte de meus amigos. Mais uma vez! Enquanto seu sangue borbulhava e manchava meu manto, me aproximo de seu rosto, com fúria e lágrimas nos olhos.

– Basta de sangue por minha causa! Meu nome a partir de agora será 'Ãmuru, o maldito, guarde-o bem. Que seu espírito só encontre paz quando o meu próprio encontrar – sentenciei, mas não marquei sua testa com a runa maldita. Já tenho fantasmas demais para carregar.

Com a informação que desejava, abandono o corpo que se debatia debilmente e me esgueiro de volta para os arbustos, não sem antes tomar sua tacapema. Era feita de liga de ferro, matéria rara nestes...

– Ali! Há mais um deles!

Logo uma trupe de quatro ou cinco robustos guerreiros jagüapy surge no meu campo de visão. Corro em direção ao rio, seguido pelo silvar de flechas que, apenas devido à minha maldita proteção, não me acertavam. Alcanço um monte de terra e, com a tacapemaem punho, me precipito em direção às águas. Logo eles alcançam a margem, disparam mais flechas e esperam que eu suba para respirar, o que não vai acontecer. Mergulho fundo e subo o rio, deixando-os para trás.

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Ainda durante a noite, horas rio acima, eleseguiu um braço de água que entrava floresta adentro, acompanhando um igarapé que rumava para o norte. Depois de muito nadar, encontrou a grande maracarecuia que marcava a entrada, de ramos frondosos e o tronco coberto das flores vermelhas; mergulhou mais fundo.

Aquelas terras estavam nos limites do antigo domínio de sua nação, e há anos as outras tribos não subiam tanto o rio. Havia um túnel feito de madeira, tão antigo quanto era esquecido, que começava dentro do rio e levava para a terra-alta da floresta, para um salão subterrâneo. Na época das Chuvas Intermináveis, séculos atrás, muita coisa foi perdida, cidades foram destruídas e muitos destes subterrâneos desabaram ou foram inundados. Ele encontrou este há alguns anos, e a transformou em seu santuário secreto.

Após um tempo subindo o túnel, ele emerge do lado de dentro do que teria sido um pequeno salão, agora apenas uma galeria parcialmente alagada. A luz suave de lumo-orquídeas, plantadas ali por ele, iluminava o local. O salão foi construído com madeira, lama e a rarapedra, matéria incomum nas planícies do rio, símbolo da antiga civilização dos altiplanos do norte, símbolo da pujança kuapareté. Deveria ter sido um dos abrigos de seu antigo povo. Acima e sobre ele, coberto de terra, a floresta crescia, e podiam-se ver raízes brotando do teto, de onde gotejava a água sempre abundante da floresta. Na parede oeste, uma plataforma de tábuas partidas despontava da água, sobre a qual uma série de baús, jarros, potes e mantos descansavam sobre um tapete de turfa seca.

Seus perseguidores nunca chegariam ali; ele não tem pressa. Enxuga o rosto e as mãos com um manto de algodão, descansa a tacapemaroubada ao lado de alguns baús, guarda suas facas de bronze e se senta. Retira seu manto e o pendura para secar numa armação de madeira, revelando um corpo de músculos definidos e marcados de cicatrizes. A cobrir-lhe totalmente as costas, uma ampla e intricada tatuagem negra; a sua segunda maldição.

Escolhe um manto seco para vestir, e cuidadosamente abre os potes menores, onde guardava o pigmento escuro.

Há lágrimas nos olhos, misturadas à água do rio.

Ele se ajoelha, tremendo de ódio e dor. Em silêncio, jurava vingar seus companheiros, a única taba que o aceitara, depois que seu pai e mestre morrera, e depois que sua jovem esposa se foi. Ele era um kuapareté, amaldiçoado desde o berço pelo sangue de seus antepassados, e não encontraria abrigo nas cidades da floresta, tampouco em suas tabas. A taba de Moetessara, sua líder e amiga, foi a primeira que o aceitou, mesmo sabendo o que ele era. E agora pagaram o preço com sangue. Não havia volta. Não havia lugar para alguém como ele.

Que assim fosse, então.

Limpou os olhos e começou a preparar os instrumentos de tinta e corte. Tomou a faca ritual, cravejada de ágatas, e estendeu o braço esquerdo.

Seu pai foi um küatiary-jara, um mestre da pintura e tatuagem, e lhe ensinara as artes secretas dos kuapareté, que se perderam na guerra de séculos atrás. Fora ele quem desenhara a tatuagem massiva de suas costas, sua maior obra-prima, sua maior benção e a mais terrível das maldições. A palavra proteção, escrita várias vezes em todas as runas das línguas antigas, enlaçavam-se umas com as outras, imitando uma carapaça de tartaruga, irradiando do centro das costas. A tatuagem atuava como um escudo poderoso, como o casco da tartaruga sagrada de seu clã, protegendo-lhe de todo o mal. Mas com sofrimento ele aprendeu que este mal, ao resvalar em sua proteção, atingiria aquele que estivesse mais próximo, amigo ou inimigo; seu pai e sua esposa se foram assim, e agora mais uma vez, enquanto ele sai ileso, a sua taba pagou com sangue.

Segurando a faca com força, ele começa a desenhar no braço esquerdo. Há dor, mas ele não se importa.

Todo recomeço trás dor.

Ele tivera um nome quando criança, um nome feliz, e um nome sóbrio quando se tornou adulto, como era o costume nas planícies de So'üandype; agora, porém, tomaria outro nome, um para honrar seus companheiros e para lembrá-lo de suas maldições. Para lembrá-lo da dor que causou e causaria a quem se aproximasse. Com ele viveria recluso, agora, e não lançaria a sombra de sua maldição sobre outro amigo.

Com a habilidade treinada durante toda uma vida, e a vida dos kuapareté é menos breve do que as demais tribos, ele impregna em sua pele o pigmento negro com a faca ritual, desenhando as espirais sagradas e inscrevendo o nome que tomaria para si, cobrindo todo o braço esquerdo. Ele ainda carregaria este nome, décadas depois, quando a tormenta de seu mundo tiver surgido. Seria este o nome que a brisa da morte sussurraria, quando viesse soprar seu espírito.

Seu nome seria a partir de então, 'Ãmuru, alma-maldita na língua geral, o duas vezes amaldiçoado.

A cerimônia durou horas, ao final da qual ele, exausto e com o braço inchado, desfaleceu sobre os tapetes do salão.

2. O Juramento do Outono

– Abaeté! Há três dias procuramos o desgraçado, sem encontrar sequer seu rastro!

Quem se queixa é um guerreiro forte, com as penas dos jagüapy e um manto marrom. Abaeté, o líder, protegido por um gibãode couro de tapi'irussú, parecia duas vezes mais robusto, e trazia o canitar de penas do chefe.

– Quieto! As fadas dos igarapés dizem que um ser subiu o rio. Nenhum dos que matamos naquela taba possuía os malditos olhos dourados, este que fugiu há de ser ele! Ele pode estar usando algum feitiço para não ser encontrado. Ou você prefere que expliquemos na cidade um ataque sem motivo a uma taba numa zona de paz?

O outro se calou.

– Precisamos da cabeça deste desgraçado, ou então as nossas próprias poderão enfeitar os muros da cidade. Onde está Pepobý?!

De trás do círculo de homens, um pequeno ser azulado flutuou. Lembrava um homem diminuto, e o que parecia ser sumo de frutas estava impregnado e escorrendo de sua pele, dando-lhe a tonalidade entre o azul e o púrpura. Trazia com ele um leve cheiro adocicado, e tinha às costas um par de asas de folha, que batiam devagar.

– Sim, Abaeté? – respondeu o pequeno ser.

– As fadas-amora estão conosco em nossa acusação? Vocês realmente viram um maldito kuapareté na taba que atacamos?

– Há outros de minha cidade-pomar que podem confirmar, Abaeté. Ele trazia o cabelo cortado à maneirados mboiessá, com quem vivia, porém mais de uma vez notamos seus olhos dourados quando caçava nas matas.

– Maldito seja! Sua presença profana com certeza é a causa do desaparecimento da caça. Ouçam, todos! – disse, virando-se para o bando – O regente da cidade vai nos congratular e receberemos as tatuagens dos nobres quando voltarmos com a cabeça do kuapareté em nossa lança! Continuem procurando!

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Pela quarta vez desde o ataque à taba mboiessá, o sol se pôs atrás da cordilheira de Ybyty-piranga, a Serra Vermelha, tingindo os cumes daquelas montanhas com o rubro que lhe dera o nome. 'Ãmuru, após pescar alguns peixes no lago do salão, preparava-os ao fogo. Seu braço esquerdo ainda estava inchado, e apesar dos unguentos cicatrizantes de seu pai, ele sabia que ficaria assim por mais algumas semanas. Já podia manejar a tacapema, porém, e no dia seguinte sairia à caça dos assassinos de seus companheiros. Ele conhecia aquelas planícies e sabia que não poderiam estar longe, se é que tivessem desistido de procurá-lo, o que ele duvidava.

O sol se punha lá fora e aos poucos o ar do salão foi ficando mais pesado. Logo ele ouviria os sussurros e ruídos na penumbra que sempre o acompanharam na hora do crepúsculo. Das últimas vezes, porém, havia mais deles, e por isso por três dias 'Ãmuruevitou olhar para as sombras da galeria.

Um gemido de dor, forte como só os mortos recentes sabiam fazer, chamou-lhe a atenção para as trevas que a custo evitava. Ergueu os olhos.

De pé, no limite da luz do fogo e da escuridão, um grupo de vultos encarava-o. Relutante, mirou cada um deles. Viu o rosto velho de seu pai, em repreensão muda. Viu os olhos chorosos da sua bela Mbotyruna, cujo vulto ainda era formoso e jovem quando morrera. Viu a silhueta do jovem Tatu'í e do grande Tejunhana, antigos amigos de tempos idos. E viu, por fim, uma fileira de vultos novos, vultos que por três dias evitara encontrar e que agora trouxeram lágrimas de dor e ódio. Seus companheiros mboiessá, todos ali, mortos enquanto ele ainda vivia. No meio deles, a líder Moetessara, seu semblante lívido e com olhos raivosos. Ela ergueu o dedo e apontou para ele, acusadora. O gesto atingiu 'Ãmuru como uma flecha real não poderia, e ele tombou com o rosto no chão.

– Perdão, perdão! – sussurrou.

Mas os fantasmas nada disseram, nunca diziam, e quando a noite veio, 'Ãmuru estava novamente só em seu salão, o braço ardendo. No silêncio, apenas o crepitar do fogo.

Enxugando o rosto, ergueu-se, resignado. Depois de tantos anos, já não sabia se os fantasmas eram reais ou se eram frutos de sua loucura. Temia que a sua maldição impedisse as sombras de seus amigos de partirem, ou pior, temia que a razão por não partirem era o ódio que nutriam por ele.

Um barulho na água.

Tomou a faca mais próxima e se voltou veloz, em posição de ataque. De pé na beira da água, uma figura escura e com olhar assustado erguia os braços em defesa.

– Por favor, não me machuque! – ganiu a criatura. Era um ser de corpo magro, porém delicado, uma mulher da metade da altura de um homem, com pele cinzenta à luz do fogo e grandes olhos negros sem pupilas. Vestia um pequeno manto escuro, e três pares de orelhas ladeavam a cabeça, de onde escorria um cabelo volumoso e molhado, que alcançava além de seus calcanhares.

– Diga-me seu nome e o que faz aqui – sibilou 'Ãmuru por entre os dentes.

– Veja, veja, e ouça bem – respondeu apressado o ser-mulher – nada tenho para fazer-lhe mal, mas não posso dizer-lhe meu nome. Vim aqui apenas me alimentar, não esperava encontrá-lo.

– Já conhecia este lugar?

– Sou uma fada-segredo, sabe, e me alimento das coisas secretas. Senti o cheiro do segredo no igarapé por que passei, e vim colher um pouco.

– Uma fada-segredo? – respondeu, ainda sem baixar a faca – E o que sua espécie faz quando descobrem o que é secreto, fada-sem-nome?

A pergunta foi carregada de tensão, como uma ameaça. Mas ela estava acostumada a ser recepcionada desta maneira.

– Mantemo-lo secreto, é claro, porque de outra maneira não nos alimentaria ­– respondeu – temos ouvidos, olhos e um faro bom para mistérios, e vivemos de acumulá-los.

– Mesmo assim, este lugar é meu e não posso permitir que outros saibam dele. Sua conversa não me convenceu. Você bem poderia ser uma fada-mentira, do tipo mais asqueroso, ou algum outro ser que não honra as coisas que diz. Dê-me uma garantia melhor! – e ergueu a faca, fazendo menção de avançar.

– Um juramento, é claro, um juramento! – ganiu a pequena mulher ­– troquemos presentes e juremos pela Brisa do Outono sobre este segredo!
'Ãmuru baixou a lâmina. Ninguém invocaria o nome de um dos Oito num blefe. Tampouco proporia um Juramento do Outono se pretendesse quebrá-lo. Até as fadas-mentira o evitam.

– Pois bem – 'Ãmuru se sentou, com as pernas cruzadas – Aproxime-se. Este é meu salão, e eu sou Etame'yma'Ãmuru, o Maldito, o Sem-pátria. Você, fada-sem-nome, propôs o juramento, então me diga qual o teu nome e o teu presente.

Ela tremeu um pouco em indecisão, se aproximou dois passos e se sentou também.

– Meu nome é o meu maior mistério, e os únicos presentes que posso oferecer são segredos. O que deseja saber? – perguntou ela.

O kuapareté alisou seu queixo, livre de barba como eram os homens do sul, enquanto ponderava. Pressionando o cabo da faca, que a cautela não permitiu guardar, disse:

– Quero o número, a força e a localização de meus inimigos.

– Isso não é segredo, todas as fadas da curva do rio sabem que a taba jagüapy se deslocou para o oeste de sua nação esta semana. Não posso, então, responder-lhe. O que me perguntar deve ser um segredo que eu tenha colhido.
'Ãmuru fechou o semblante, pensativo, mas então o canto da boca se curvou para cima num meio-sorriso com a lembrança de um nome.

– Se você esteve próxima da taba, deve ter encontrado com algum deles e pode saber alguma coisa que apenas eles saibam. Qual é, então, o ponto fraco de Abaeté dos jagüapy?

Para contentamento de 'Ãmuru, a fada endireitou sua postura e respondeu, numa voz distante e monotônica, como o transe de um xamã:

– Abaeté é um guerreiro so'ogüabá, um homem-onça. Seu ponto fraco é sua perna esquerda na forma animal, ferida duas semanas atrás numa caçada frustrada, mantida em segredo para que sua taba não veja o acidente como um mau-presságio.

– Mau-presságio, hein? – gargalhou 'Ãmuru – Muito bem, muito bem! Um ótimo presente, pequena! Sua vez; o que deseja? Tenho facas de bronze e pedra, pigmentos e unguentos raros. Tenho tesouros que juntei ao longo dos anos, resgatados de outras galerias submersas e cidades no fundo do rio. O que deseja?

– Eu agradeço, mas só me serviriam segredos, 'Ãmuru – respondeu ela, um tanto hesitante.

O outro estalou a língua.

– Pois bem. Eis meu segredo: sou um maldito kuapareté, da tribo extinta há duzentos anos, e tenho vivido a última década entre a taba mboiessá da honrada Moetessara.

Ela ficou calada, e respondeu baixo, quase num sussurro.

– Isso também não é mais segredo... as fadas-amora sabem e compactuam com os jagüapy – gemeu ela.

A fúria nos olhos de 'Ãmuru assustou sobremaneira a pequena fada, que por um instante imaginou que ele quebraria o ritual do juramento e a atacaria. Ao invés disso, porém, ele suspirou com ódio.

– Pois bem. Tenho alguns segredos ainda, dos quais depende minha vida e não os arriscaria neste jogo. Mas posso então lhe ensinar uma tatuagem de proteção, simples porém mais eficaz que os desenhos das outras tribos. Um conhecimento perdido de minha extinta nação. O que acha?

Para alívio de 'Ãmuru, a pequena fada sorriu e concordou.

3. O demônio do rio

O sol nasceria em pouco tempo por sobre os cumes distantes de Ybyty-tinga, a Serra Branca do leste do vale. Após quase uma semana de intensa procura, os jagüapy dormem exaustos e não se levantariam antes do sol.
Mas 'Ãmuru sim.

Emergindo de um dos inúmeros igarapés daquela parte do rio, ele se apoia na margem de lama e agarra as raízes para sair da água. Possui no rosto a pintura de guerra dos kuapareté, a qual usou poucas vezes: a essência negra ao redor dos olhos, a cor parda a preencher o rosto; um demônio da lama do rio. Traz o torço desnudo, apenas vestindo o manto abaixo da cintura, a tatuagem das costas mostrada por inteira. O braço esquerdo ainda está inchado e representa um ponto fraco, mas é o símbolo de sua vingança e ele o exibe com orgulho.

Puxa da lama o grande arco que trouxera na noite anterior e se esgueira até as raízes de um gigantesco jatobá, onde escondera as longas flechas. Os jagüapy sabem rastrear bem, mas não há rastro que a água do rio não possa ocultar, e os igarapés são as velhas estradas de 'Ãmuru. O guerreiro avalia ao todo trinta flechas de pontas serradas, difíceis de tirar uma vez que mordem o alvo.

Ele guarda as flechas num pequeno cesto que trouxeraàs costas e sobe na árvore, valendo-se dos cipós que alcançam o chão. O braço esquerdo pulsa de dor, mas não o impede. Ao alcançar uma protuberância no tronco, onde dormia uma grande bromélia, avistou a clareira da taba de seus inimigos. Duas, quatro, seis... ao todo oito ocas de madeira e palha. Uma taba pequena, como ele confirmara alguns dias antes. Descansa o cesto de flechas ao lado da bromélia, e de um buraco no tronco, desembrulha de um pano impermeável outras trinta flechas. Os ventos da sorte permitiram que se mantivessem secas. Todas tinham chumaços de algodão pouco depois das pontas, preso habilmente com cera. Ainda dentro do embrulho, gravetos de pau-fogo.

Não haveria vigia competente esta noite. Abaeté forçara seus homens ao extremo, e 'Ãmuru se certificara que seus perseguidores estivessem bastante cansados antes de agir. Ele avista o homem do último turno da noite, falseando a cabeça de sono e exaustão, recostado na parede de uma das ocas.

Ele seca as mãos num pedaço de manto que guardara com as flechas, e amarra a corda de cipó que trouxera ao redor do poderoso tronco, fincando o dente de bronze de um gancho na madeira antiga. Aos seus pésdeixa o rolo de corda preparado.

Ele puxa o arco de dentro do cesto, ainda sujo de lama, e o limpa com o manto seco. Grande como um homem, feito de osso de tapi'irussú e corda de fibra de bromélia, está todo pintado com runas de precisão, para levar a flecha certeira ao alvo. Testa a corda trançada, agora limpa. Inspira fundo, voltando-se para a sagrada direção sul, fazendo uma breve oração ao Vento das Florestas, pai dos homens das selvas. Depois se volta para o norte, a direção sagrada da guerra, e oferece a vida de seus inimigos. Por fim, cospe para espantar o azar. A respiração está tensa pela vingança, porque hoje não derramaria lágrimas.
Derramaria sangue.

O sol era ainda um pequeno halo dourado sobre a serra quando a primeira flecha incendiária acertou o teto da casa do chefe, pouco depois da flecha serrada que atravessou a garganta do vigia. Com velocidade, logo seis, sete, oito flechas atingem o mesmo teto, e outras começam a atingir as ocas em torno. Atiçadas com runas de fogo, logo as chamas ganham força.

Soa o trombeta de guerra. Os primeiros a sair das ocas em chamas recebem as flechas de 'Ãmuru. Ele poupa os kunumĩs, mas não as mulheres; as kunhãs jagüapy são ferozes e versadas na guerra. O grande Abaeté surgiu em seu campo de visão, soando a trombeta, e por muito pouco escapou das flechas mortais, pulando para trás da oca.

– Aos arcos! – gritou ele.

Passada a surpresa, os jagüapy logo identificam a origem do ataque, e alguns revidam. Duas flechas fincam na madeira aos pés de 'Ãmuru, outras próximas à sua cabeça. Uma resvala em seu braço esquerdo, tirando sangue e fazendo a nova tatuagem queimar de dor. Ele cessa o ataque. Sua maldição o protege do perigo fatal, mas não é invencível, sendo por vezes permeável aos males menores. Tenta se erguer e lançar um último ataque, mas outra flecha o impede.Hora da retirada.

Ele larga o arco e as flechas, contrariado por não ter usado todas. Quantos teria derrubado? Seis, oito? Ele não tem certeza; joga a corda árvore abaixo e pula. O laço aperta e o mantém no ar, e com pressa, ele galga a árvore na descida. Há um braço de rio entre ele e os jagüapy, e antes que eles alcancem a margem, ele já submergiu.

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– Na outra margem!

Quem grita é um Abaeté colérico, apontando e instigando seus homens para a guerra. Um comboio de quatro mulheres e oito homens, incluindo o próprio Abaeté, armados de tacapemas, lanças e arcos, surgem na beira do rio. As canoas se encontravam muito acima, de modo que eles teriam que atravessar a nado, enquanto os últimos mantinham guarda com os arcos. 'Ãmuru escolhera o local bem.

A fumaça negra do incêndio já subia ao céu, enquanto os que ficaram na taba lutavam contra as chamas que insistiam em não apagar. As crianças olhavam aterrorizadas para as labaredas que resistiam aos baldes de água, como se fosse bruxaria.

Talvez fosse.

O grupo de Abaeté, não encontrando o inimigo – seus arqueiros insistindo que ninguém saiu da água desde que eles chegaram – se separa em três grupos. Ele oferece pagar uma tatuagem poderosa para quem trouxer a cabeça do kuapareté, e duas tatuagens se ele estiver vivo. As trombetas de guerra ecoam sob as árvores.

4. A onça e o amaldiçoado

Havia uma antiga samapé daquele lado do rio, estrada-de-cordas na linguagem da floresta, armada entre as árvores mais altas. As folhas das copas e do cipó que crescia na própria samapé ocultava-a de olhos desavisados, de modo que sua existência era quase secreta.

Sobre ela, a fada-segredo acompanhava o grupo guerreiro de Abaeté. Seus passos eram silenciosos como os de umatapi'ira durante a noite, e seu peso sequer fazia ranger as cordas. Sentira o cheiro de mais mistério em 'Ãmuru, e com a curiosidade-fome que só sua espécie possui, desejava ver o desfecho daquela batalha.

Por entre as folhas, ela vigiava os guerreiros.

Abaeté dos jagüapy andava acompanhado de mais três, duas mulheres e um homem. Enquanto seus guerreiros vestiam simples túnicas de algodão ou peles, Abaeté vinha vestido com um gibão completo de couro de onça, além de um broquel de pele de jacaré, armadura das mais desejadas em So'üandype. Trazia ainda às costas uma tacapemade ferro, que sabia manejar como poucos, e uma faca na cintura. Foram os anos nos altiplanos espinhosos do norte que o talharam para a guerra, e ser um líder entre os jagüapy, nação guerreira por excelência, era muito mais do que saber lutar.

Seguiam por uma trilha entre jacarandás e braúnas, sondando o caminho à frente. Súbito, um dos guerreiros se volta para trás e se coloca contra as costas de Abaeté, caindo em seguida com um gemido seco. Cravado em seu crânio, um machadinhode bronze.

O grito de guerra veio em seguida.

Saindo detrás de uma touceira de palmas, um vulto pintado de pardo e negro investe contra o grupo, empunhando com as duas mãos a tacapemade ferro. Uma das guerreiras rolou para trás, erguendo e retesando o longo arco, enquanto a outra atacou com a lança que empunhava. Abaeté afastou-se e tocou a trombeta de guerra, chamando os demais.

Cada jagüapy era treinado desde cedo na guerra, de modo que as estocadas precisas da guerreira impediam que 'Ãmuru sequer se aproximasse. Por duas vezes ela riscou sua pele, sem que ele conseguisse sequer tocá-la. Logo Abaeté uniu-se ao embate, e à duras penaso kuapareté conseguia mantê-los afastados.
Mas a brisa da fortuna soprava sobre ele. A arqueira, que se prostrara de lado da batalha, vendo uma brecha na defesa inimiga, dispara seu arco. A maldição de 'Ãmuru fez seu trabalho, fazendo-o esquivar-se no exato momento em que a guerreira da lança entrava na linha do ataque. Quando a ponta da longa flecha surgiu entre seus seios, ela, atônita, freou a estocada, e 'Ãmuru desceu sobre ela sua lâmina. Sangue jorrou para cima.

Restavam dois.

'Ãmuru iniciou um combate mortal com Abaeté, enquanto a arqueira, ainda perplexa com seu erro, procurava uma direção em que pudesse atingi-lo. Uma segunda flecha zuniu, agora passando rente à cabeça do kuapareté, quase acertando Abaeté e se perdendo com um baque agudo nos galhos acima. Foi quando o líder jagüapy investiu com um golpe de escudo, esbarrando no braço ferido de 'Ãmuru, fazendo-o urrar de dor e retroceder alguns passos.

Ambos os atacantes pararam por algumas batidas de coração. O canitar de penas do líder jagüapy jazia em pedaços num canto, e seu gibão estava riscado com os golpes do inimigo. 'Ãmuruarfava, sujo de sangue, empunhando a tacapemacom a direita enquanto descansava o braço esquerdo, que ardia como se estivesse em brasa.

– Kanguna, o que raios está fazendo? – sibilou Abaeté por entre os dentes, sem se voltar.

Mas a distração foi suficiente. 'Ãmuru investiu contra o líder, desviando no último momento para atacar a arqueira, que não teve tempo de sacar sua adaga. Sua tacapemaatingiu-a em cheio, abrindo um talo entre seu pescoço e tórax, fazendo o sangue esguichar enquanto ele rolava para longe.
Restara apenas um. O clamor de outra corneta indicava que os demais se aproximavam.

– Maldito seja, Abaeté! – gritou 'Ãmuru, manchado de pardo, negro e sangue – Vou regar essas raízes com seu sangue e urinar em seu corpo, filho de um covarde! Eu o desafio para um duelo de vida ou morte perante os Oito Ventos!

– Quem você pensa que é, sangue-maldito, para desafiar Abaeté dos jagüapy? Seu sangue é estrume!Vai molhar a terra muito antes que meus guerreiros cheguem! – e investiu.

Era o que 'Ãmuru queria. Mesmo com sua proteção, teria uma enorme dificuldade em enfrentar todo o bando, e isso não era necessário. Se tivesse a cabeça de Abaeté, teria derrotado a taba.

No meio da ofensiva, Abaeté retesou as pernas e saltou, largando a tacapema e o escudo, transformando-se em pleno ar. A pele que vestia fundiu-se ao seu corpo, seus membros se alongaram e mudaram de forma, seu rosto mudou. Tornou-se uma onça tão grande quanto um homem, com músculos e garras que fariam hesitar o guerreiro mais apto.

Mas 'Ãmuru sabia, e não se surpreendeu com a transformação. Recebeu o ataque com a lâmina de seu tacapema, e conseguiu conter o peso do inimigo.

Abaeté-onça mordia e arranhava com suas garras sobre 'Ãmuru, diminuto ante o porte do inimigo. Com um chute na barriga da fera, ele conseguiu sair debaixo do ataque, cortando a pele do animal ao se retirar.

A onça urrou de raiva e atacou mais uma vez. Apesar de sua agilidade, logo 'Ãmuru estava de novo sob o peso do inimigo, e sua tacapema rodou para longe, fincando na lama do chão. Homem e fera face a face, mão segurando a garra. A onça era mais forte, porém, e 'Ãmuru estava desarmado.

Restava ainda as facas de suas botas. Empurrou o animal para trás, o que exigiu muito mais do previra, rolou sobre as costas e sacou as facas com a cambalhota. Suava e arfava. Outra corneta urrou, terrivelmente próxima.
Teria que acabar logo.

A fera investiu, mas 'Ãmuru aguardou até o último momento em posição de defesa. QuandoAbaeté-onça estava próximo, ele se abaixou e pulou para a direita, forçando o inimigo a usar a perna traseira esquerda – o ponto fraco – para mudar a direção do ataque. No momento em que os músculos da perna tencionaram, a onça não pode conter um ganido de dor, se desequilibrando e abrindo a guarda. 'Ãmuru sorriu. Mirou as pontas de ambas as facas contra o flanco da fera, abaixo da pata dianteira esquerda, num ataque ascendente, erguendo o animal. O sangue esguichou sobre si, acertara uma artéria. Abaeté-onça ainda teve força para empurrar, mas não pôde se mover mais. Sua perna não respondia, seus olhos turvavam com a dordo ferimento, e ante sua desorientação, 'Ãmuru largou as facas, circulou-o e pulou sobre ele, montando-o e passando ambos os braços ao redor de seu pescoço. Apertou.

O ar faltou, a perna e o flanco queimaram e o desespero lhe deu força, mas Abaeté-onça não conseguia se livrar do abraço. O braço recém-tatuado de 'Ãmuruardeu de dor com o aperto, mas ele não largaria a fera por nada nesse ou no além-mundo. Com um puxão mais forte e um grito de raiva e dor, ouviu-se um estalo vindo do pescoço da fera, e com um rugido abafado, a onça cessou de se mexer, e a sombra de Abaeté dos Jagüapy deixou seu corpo.

Exausto, sangrando e suado, o braço ardendo como o sol do verão mais infernal, 'Ãmuru desabou, enquanto o felino revertia para o corpo quebrado de Abaeté-homem.

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Sobre a alta samapé, a fada-segredo gemeu de dor. A maldição de 'Ãmuru mudou o alvo da última flecha, fazendo-a subir e resvalar o pescoço da pequena fada, perigosamente perto de sua garganta. Nenhum ponto vital fora atingido, porém. No exato momento em que a flecha riscou, ela sentiu a tatuagem de proteção do ombro, presente de 'Ãmuru durante o ritual, queimar e se extinguir. Fora poupada.

O susto a fez perder a luta metros abaixo, mas a corneta de guerra devolveu-lhe à realidade. Por entre as folhas, ela viu um grupo de jagüapy se aproximando nas árvores distantes. No local da luta, três corpos, um decapitado.

A cabeça de Abaeté jazia espetada numa lança, ainda sangrando, fincada na terra.

Seu faro sentiu o cheiro de segredo e, antes que o grupo chegasse, ela conseguiu avistar 'Ãmuru, que correu e saltou para a água. Em pleno ar, seu manto colou-se à sua pele, suas costas aumentaram e seu corpo diminuiu. Mudou-se.

'Ãmuru-tartaruga subiu o igarapé, e nunca mais retornou àquela curva do rio.

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Imagem retirada do portfolio no devianart de: inetgrfx

5 comentários:

  1. E saiuuuu :D Gostei das palavras "novas" em tupi ^^

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  2. Cara,gostei demais da história, principalmente do conceito de mundo. O lance das tatuagens ficou sensacional, acho que já vi isso em outra história sua, agora não lembro qual... as palavras em tupi eu também curti. E as fadas-amora bem que poderiam fazer parte de Adventure Time xD

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    1. Haha, valeu Heitor o/
      Ainda vou ler sobre a cultura tupinambá pra desenvolver mais o universo, e vou postando por aqui (:

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  3. *O* nunca tinha lido nada seu, adorei! =D Adorei o treco da tatuagens, ainda mais a gradação da construção da imagem da tatuagem nas costas (foi um daqueles momentos em q eu paro de ler só p/curtir a sensação, parecida com a de assistir a um vídeo de uma flor desabrochando que é inesperadamente inusitada e bela, só q imaginando, o q fica foda pacas). Gostei tb da ideia das fadas-segredos de da dinâmica da narrativa =D
    obs: heitor, sacanagem o treco das fadas-amora, agora fiquei imaginando essas fadas gordinhas e encaroçadas XD

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    1. Valeu pelos comentários :D
      'Ãmuru com certeza vai aparecer em otros contos o/

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