Conto que demorooooou pra sair - embróglios com tupi antigo e derivados - mas espero que gostem o/
Um conto sobre as selvas do sul de Aera, sobre vingança e maldição.
'Ãmuru
(do universo de Aera, o mundo dos deuses-ventos)
(histórias de Ka'aretama, as selvas do Sul)
(histórias de Ka'aretama, as selvas do Sul)
1. Rebatismo
A
coruja suindara piou numa árvore próxima, chamando os ventos da morte, e meu
inimigo sabia que eles logo viriam.
–
Fale! – sussurrei, com minha faca de bronze colada em sua garganta – fale agora
ou vou marcar seu cadáver e amaldiçoar seu espírito a vagar pelos vales escuros
deste mundo.
–
Você... você não tem esse poder! – balbuciou ele, mas eu podia ver o medo em
seus olhos. Imobilizado no chão, encontrei esse desgraçado rondando próximo de
minha antigataba, agora destroçada e em chamas, onde os corpos de meus
companheiros, eu bem sabia, jaziam mortos.
Ele
vinha armado com as penas negras e fulvas da nação guerreira jagüapy, o que
significava que, se o dominei facilmente, foi porque as sombras me protegeram.
Eu não teria tanta sorte contra um grupo inteiro.
Não
havia tempo. Aproximei meu rosto do desgraçado e exibi a cor dos meus olhos,
minha primeira maldição. A mata estava escura, mas a luz do incêndio de minha
aldeia seria suficiente.
– Kuapareté! – ganiu ele, clamando o nome
de meus antepassados, ao notar o brilho dourado de meus olhos. Herança maldita
de meu sangue.
–
Sim, e como tal guardo segredos escuros demais para esta era. Se quiser que seu
espírito encontre a brisa da morte e tenha paz, me diga por que infernosnos
atacaram!
–
Então era verdade! – ele disse, e cuspiu em meu rosto – Abaeté nos disse que
encontraríamos um sangue-maldito nesta taba, e que somente a sua cabeça numa
estaca traria os bandos de caça de volta! Você vai pagar por existir, maldito
kuapar...
Corto
sua garganta e silencio suas injúrias. Então eu fui a causa da morte de meus amigos. Mais uma vez! Enquanto seu
sangue borbulhava e manchava meu manto, me aproximo de seu rosto, com fúria e
lágrimas nos olhos.
–
Basta de sangue por minha causa! Meu nome a partir de agora será 'Ãmuru, o
maldito, guarde-o bem. Que seu espírito só encontre paz quando o meu próprio
encontrar – sentenciei, mas não marquei sua testa com a runa maldita. Já tenho
fantasmas demais para carregar.
Com
a informação que desejava, abandono o corpo que se debatia debilmente e me
esgueiro de volta para os arbustos, não sem antes tomar sua tacapema. Era feita
de liga de ferro, matéria rara nestes...
–
Ali! Há mais um deles!
Logo
uma trupe de quatro ou cinco robustos guerreiros jagüapy surge no meu campo de
visão. Corro em direção ao rio, seguido pelo silvar de flechas que, apenas devido
à minha maldita proteção, não me acertavam. Alcanço um monte de terra e, com a tacapemaem
punho, me precipito em direção às águas. Logo eles alcançam a margem, disparam
mais flechas e esperam que eu suba para respirar, o que não vai acontecer.
Mergulho fundo e subo o rio, deixando-os para trás.
<<<>>>
Ainda
durante a noite, horas rio acima, eleseguiu um braço de água que entrava
floresta adentro, acompanhando um igarapé que rumava para o norte. Depois de
muito nadar, encontrou a grande maracarecuia que marcava a entrada, de ramos
frondosos e o tronco coberto das flores vermelhas; mergulhou mais fundo.
Aquelas
terras estavam nos limites do antigo domínio de sua nação, e há anos as outras
tribos não subiam tanto o rio. Havia um túnel feito de madeira, tão antigo
quanto era esquecido, que começava dentro do rio e levava para a terra-alta da
floresta, para um salão subterrâneo. Na época das Chuvas Intermináveis, séculos
atrás, muita coisa foi perdida, cidades foram destruídas e muitos destes
subterrâneos desabaram ou foram inundados. Ele encontrou este há alguns anos, e
a transformou em seu santuário secreto.
Após
um tempo subindo o túnel, ele emerge do lado de dentro do que teria sido um
pequeno salão, agora apenas uma galeria parcialmente alagada. A luz suave de
lumo-orquídeas, plantadas ali por ele, iluminava o local. O salão foi construído
com madeira, lama e a rarapedra, matéria incomum nas planícies do rio, símbolo
da antiga civilização dos altiplanos do norte, símbolo da pujança kuapareté. Deveria
ter sido um dos abrigos de seu antigo povo. Acima e sobre ele, coberto de
terra, a floresta crescia, e podiam-se ver raízes brotando do teto, de onde
gotejava a água sempre abundante da floresta. Na parede oeste, uma plataforma
de tábuas partidas despontava da água, sobre a qual uma série de baús, jarros,
potes e mantos descansavam sobre um tapete de turfa seca.
Seus
perseguidores nunca chegariam ali; ele não tem pressa. Enxuga o rosto e as mãos
com um manto de algodão, descansa a tacapemaroubada ao lado de alguns baús,
guarda suas facas de bronze e se senta. Retira seu manto e o pendura para secar
numa armação de madeira, revelando um corpo de músculos definidos e marcados de
cicatrizes. A cobrir-lhe totalmente as costas, uma ampla e intricada tatuagem
negra; a sua segunda maldição.
Escolhe
um manto seco para vestir, e cuidadosamente abre os potes menores, onde
guardava o pigmento escuro.
Há
lágrimas nos olhos, misturadas à água do rio.
Ele
se ajoelha, tremendo de ódio e dor. Em silêncio, jurava vingar seus
companheiros, a única taba que o aceitara, depois que seu pai e mestre morrera,
e depois que sua jovem esposa se foi. Ele era um kuapareté, amaldiçoado desde o
berço pelo sangue de seus antepassados, e não encontraria abrigo nas cidades da
floresta, tampouco em suas tabas. A taba de Moetessara, sua líder e amiga, foi
a primeira que o aceitou, mesmo sabendo o
que ele era. E agora pagaram o preço com sangue. Não havia volta. Não havia
lugar para alguém como ele.
Que
assim fosse, então.
Limpou
os olhos e começou a preparar os instrumentos de tinta e corte. Tomou a faca
ritual, cravejada de ágatas, e estendeu o braço esquerdo.
Seu
pai foi um küatiary-jara, um mestre da pintura e tatuagem, e lhe ensinara as
artes secretas dos kuapareté, que se perderam na guerra de séculos atrás. Fora
ele quem desenhara a tatuagem massiva de suas costas, sua maior obra-prima, sua
maior benção e a mais terrível das maldições. A palavra proteção, escrita
várias vezes em todas as runas das línguas antigas, enlaçavam-se umas com as
outras, imitando uma carapaça de tartaruga, irradiando do centro das costas. A
tatuagem atuava como um escudo poderoso, como o casco da tartaruga sagrada de
seu clã, protegendo-lhe de todo o mal. Mas com sofrimento ele aprendeu que este
mal, ao resvalar em sua proteção, atingiria aquele que estivesse mais próximo,
amigo ou inimigo; seu pai e sua esposa se foram assim, e agora mais uma vez,
enquanto ele sai ileso, a sua taba pagou com sangue.
Segurando
a faca com força, ele começa a desenhar no braço esquerdo. Há dor, mas ele não
se importa.
Todo recomeço trás dor.
Ele
tivera um nome quando criança, um nome feliz, e um nome sóbrio quando se tornou
adulto, como era o costume nas planícies de So'üandype; agora, porém, tomaria
outro nome, um para honrar seus companheiros e para lembrá-lo de suas
maldições. Para lembrá-lo da dor que causou e causaria a quem se aproximasse.
Com ele viveria recluso, agora, e não lançaria a sombra de sua maldição sobre
outro amigo.
Com
a habilidade treinada durante toda uma vida, e a vida dos kuapareté é menos
breve do que as demais tribos, ele impregna em sua pele o pigmento negro com a
faca ritual, desenhando as espirais sagradas e inscrevendo o nome que tomaria
para si, cobrindo todo o braço esquerdo. Ele ainda carregaria este nome,
décadas depois, quando a tormenta de seu mundo tiver surgido. Seria este o nome
que a brisa da morte sussurraria, quando viesse soprar seu espírito.
Seu
nome seria a partir de então, 'Ãmuru, alma-maldita na língua geral, o duas
vezes amaldiçoado.
A
cerimônia durou horas, ao final da qual ele, exausto e com o braço inchado,
desfaleceu sobre os tapetes do salão.
2. O Juramento do Outono
–
Abaeté! Há três dias procuramos o desgraçado, sem encontrar sequer seu rastro!
Quem
se queixa é um guerreiro forte, com as penas dos jagüapy e um manto marrom. Abaeté,
o líder, protegido por um gibãode couro de tapi'irussú, parecia duas vezes mais
robusto, e trazia o canitar de penas do chefe.
–
Quieto! As fadas dos igarapés dizem que um ser subiu o rio. Nenhum dos que
matamos naquela taba possuía os malditos olhos dourados, este que fugiu há de
ser ele! Ele pode estar usando algum feitiço para não ser encontrado. Ou você
prefere que expliquemos na cidade um ataque sem
motivo a uma taba numa zona de paz?
O
outro se calou.
–
Precisamos da cabeça deste desgraçado, ou então as nossas próprias poderão
enfeitar os muros da cidade. Onde está Pepobý?!
De
trás do círculo de homens, um pequeno ser azulado flutuou. Lembrava um homem
diminuto, e o que parecia ser sumo de frutas estava impregnado e escorrendo de
sua pele, dando-lhe a tonalidade entre o azul e o púrpura. Trazia com ele um
leve cheiro adocicado, e tinha às costas um par de asas de folha, que batiam
devagar.
–
Sim, Abaeté? – respondeu o pequeno ser.
–
As fadas-amora estão conosco em nossa acusação? Vocês realmente viram um
maldito kuapareté na taba que atacamos?
–
Há outros de minha cidade-pomar que podem confirmar, Abaeté. Ele trazia o
cabelo cortado à maneirados mboiessá, com quem vivia, porém mais de uma vez
notamos seus olhos dourados quando caçava nas matas.
–
Maldito seja! Sua presença profana com certeza é a causa do desaparecimento da
caça. Ouçam, todos! – disse, virando-se para o bando – O regente da cidade vai
nos congratular e receberemos as tatuagens dos nobres quando voltarmos com a
cabeça do kuapareté em nossa lança! Continuem procurando!
<<<>>>
Pela
quarta vez desde o ataque à taba mboiessá, o sol se pôs atrás da cordilheira de
Ybyty-piranga, a Serra Vermelha, tingindo os cumes daquelas montanhas com o
rubro que lhe dera o nome. 'Ãmuru, após pescar alguns peixes no lago do salão,
preparava-os ao fogo. Seu braço esquerdo ainda estava inchado, e apesar dos
unguentos cicatrizantes de seu pai, ele sabia que ficaria assim por mais
algumas semanas. Já podia manejar a tacapema, porém, e no dia seguinte sairia à
caça dos assassinos de seus companheiros. Ele conhecia aquelas planícies e
sabia que não poderiam estar longe, se é que tivessem desistido de procurá-lo,
o que ele duvidava.
O
sol se punha lá fora e aos poucos o ar do salão foi ficando mais pesado. Logo
ele ouviria os sussurros e ruídos na penumbra que sempre o acompanharam na hora
do crepúsculo. Das últimas vezes, porém, havia mais deles, e por isso por três
dias 'Ãmuruevitou olhar para as sombras da galeria.
Um
gemido de dor, forte como só os mortos recentes sabiam fazer, chamou-lhe a
atenção para as trevas que a custo evitava. Ergueu os olhos.
De
pé, no limite da luz do fogo e da escuridão, um grupo de vultos encarava-o.
Relutante, mirou cada um deles. Viu o rosto velho de seu pai, em repreensão
muda. Viu os olhos chorosos da sua bela Mbotyruna, cujo vulto ainda era formoso
e jovem quando morrera. Viu a silhueta do jovem Tatu'í e do grande Tejunhana,
antigos amigos de tempos idos. E viu, por fim, uma fileira de vultos novos,
vultos que por três dias evitara encontrar e que agora trouxeram lágrimas de
dor e ódio. Seus companheiros mboiessá, todos ali, mortos enquanto ele ainda
vivia. No meio deles, a líder Moetessara, seu semblante lívido e com olhos
raivosos. Ela ergueu o dedo e apontou para ele, acusadora. O gesto atingiu 'Ãmuru
como uma flecha real não poderia, e ele tombou com o rosto no chão.
–
Perdão, perdão! – sussurrou.
Mas
os fantasmas nada disseram, nunca diziam, e quando a noite veio, 'Ãmuru estava
novamente só em seu salão, o braço ardendo. No silêncio, apenas o crepitar do
fogo.
Enxugando
o rosto, ergueu-se, resignado. Depois de tantos anos, já não sabia se os
fantasmas eram reais ou se eram frutos de sua loucura. Temia que a sua maldição
impedisse as sombras de seus amigos de partirem, ou pior, temia que a razão por
não partirem era o ódio que nutriam por ele.
Um
barulho na água.
Tomou
a faca mais próxima e se voltou veloz, em posição de ataque. De pé na beira da
água, uma figura escura e com olhar assustado erguia os braços em defesa.
–
Por favor, não me machuque! – ganiu a criatura. Era um ser de corpo magro,
porém delicado, uma mulher da metade da altura de um homem, com pele cinzenta à
luz do fogo e grandes olhos negros sem pupilas. Vestia um pequeno manto escuro,
e três pares de orelhas ladeavam a cabeça, de onde escorria um cabelo volumoso
e molhado, que alcançava além de seus calcanhares.
–
Diga-me seu nome e o que faz aqui – sibilou 'Ãmuru por entre os dentes.
–
Veja, veja, e ouça bem – respondeu apressado o ser-mulher – nada tenho para
fazer-lhe mal, mas não posso dizer-lhe meu nome. Vim aqui apenas me alimentar,
não esperava encontrá-lo.
–
Já conhecia este lugar?
–
Sou uma fada-segredo, sabe, e me alimento das coisas secretas. Senti o cheiro
do segredo no igarapé por que passei, e vim colher um pouco.
–
Uma fada-segredo? – respondeu, ainda sem baixar a faca – E o que sua espécie
faz quando descobrem o que é secreto, fada-sem-nome?
A
pergunta foi carregada de tensão, como uma ameaça. Mas ela estava acostumada a
ser recepcionada desta maneira.
–
Mantemo-lo secreto, é claro, porque
de outra maneira não nos alimentaria – respondeu – temos ouvidos, olhos e um
faro bom para mistérios, e vivemos de acumulá-los.
–
Mesmo assim, este lugar é meu e não posso permitir que outros saibam dele. Sua
conversa não me convenceu. Você bem poderia ser uma fada-mentira, do tipo mais
asqueroso, ou algum outro ser que não honra as coisas que diz. Dê-me uma
garantia melhor! – e ergueu a faca, fazendo menção de avançar.
–
Um juramento, é claro, um juramento! – ganiu a pequena mulher – troquemos
presentes e juremos pela Brisa do Outono sobre este segredo!
'Ãmuru
baixou a lâmina. Ninguém invocaria o nome de um dos Oito num blefe. Tampouco
proporia um Juramento do Outono se pretendesse quebrá-lo. Até as fadas-mentira
o evitam.
–
Pois bem – 'Ãmuru se sentou, com as pernas cruzadas – Aproxime-se. Este é meu
salão, e eu sou Etame'yma'Ãmuru, o Maldito, o Sem-pátria. Você, fada-sem-nome,
propôs o juramento, então me diga qual o teu nome e o teu presente.
Ela
tremeu um pouco em indecisão, se aproximou dois passos e se sentou também.
–
Meu nome é o meu maior mistério, e os únicos presentes que posso oferecer são
segredos. O que deseja saber? – perguntou ela.
O
kuapareté alisou seu queixo, livre de barba como eram os homens do sul,
enquanto ponderava. Pressionando o cabo da faca, que a cautela não permitiu
guardar, disse:
–
Quero o número, a força e a localização de meus inimigos.
–
Isso não é segredo, todas as fadas da curva do rio sabem que a taba jagüapy se
deslocou para o oeste de sua nação esta semana. Não posso, então,
responder-lhe. O que me perguntar deve ser um segredo que eu tenha colhido.
'Ãmuru
fechou o semblante, pensativo, mas então o canto da boca se curvou para cima
num meio-sorriso com a lembrança de um nome.
–
Se você esteve próxima da taba, deve ter encontrado com algum deles e pode
saber alguma coisa que apenas eles saibam. Qual é, então, o ponto fraco de Abaeté
dos jagüapy?
Para
contentamento de 'Ãmuru, a fada endireitou sua postura e respondeu, numa voz
distante e monotônica, como o transe de um xamã:
–
Abaeté é um guerreiro so'ogüabá, um homem-onça. Seu ponto fraco é sua perna
esquerda na forma animal, ferida duas semanas atrás numa caçada frustrada, mantida
em segredo para que sua taba não veja o acidente como um mau-presságio.
–
Mau-presságio, hein? – gargalhou 'Ãmuru – Muito bem, muito bem! Um ótimo
presente, pequena! Sua vez; o que deseja? Tenho facas de bronze e pedra,
pigmentos e unguentos raros. Tenho tesouros que juntei ao longo dos anos,
resgatados de outras galerias submersas e cidades no fundo do rio. O que
deseja?
–
Eu agradeço, mas só me serviriam segredos, 'Ãmuru – respondeu ela, um tanto
hesitante.
O
outro estalou a língua.
–
Pois bem. Eis meu segredo: sou um maldito kuapareté, da tribo extinta há
duzentos anos, e tenho vivido a última década entre a taba mboiessá da honrada Moetessara.
Ela
ficou calada, e respondeu baixo, quase num sussurro.
–
Isso também não é mais segredo... as fadas-amora sabem e compactuam com os jagüapy
– gemeu ela.
A
fúria nos olhos de 'Ãmuru assustou sobremaneira a pequena fada, que por um
instante imaginou que ele quebraria o ritual do juramento e a atacaria. Ao
invés disso, porém, ele suspirou com ódio.
–
Pois bem. Tenho alguns segredos ainda, dos quais depende minha vida e não os
arriscaria neste jogo. Mas posso então lhe ensinar uma tatuagem de proteção,
simples porém mais eficaz que os desenhos das outras tribos. Um conhecimento
perdido de minha extinta nação. O que acha?
Para
alívio de 'Ãmuru, a pequena fada sorriu e concordou.
3. O demônio do rio
O sol nasceria
em pouco tempo por sobre os cumes distantes de Ybyty-tinga, a Serra Branca do
leste do vale. Após quase uma semana de intensa procura, os jagüapy dormem
exaustos e não se levantariam antes do sol.
Mas 'Ãmuru sim.
Emergindo de um
dos inúmeros igarapés daquela parte do rio, ele se apoia na margem de lama e
agarra as raízes para sair da água. Possui no rosto a pintura de guerra dos
kuapareté, a qual usou poucas vezes: a essência negra ao redor dos olhos, a cor
parda a preencher o rosto; um demônio da lama do rio. Traz o torço desnudo,
apenas vestindo o manto abaixo da cintura, a tatuagem das costas mostrada por
inteira. O braço esquerdo ainda está inchado e representa um ponto fraco, mas é
o símbolo de sua vingança e ele o exibe com orgulho.
Puxa da lama o
grande arco que trouxera na noite anterior e se esgueira até as raízes de um
gigantesco jatobá, onde escondera as longas flechas. Os jagüapy sabem rastrear
bem, mas não há rastro que a água do rio não possa ocultar, e os igarapés são
as velhas estradas de 'Ãmuru. O guerreiro avalia ao todo trinta flechas de
pontas serradas, difíceis de tirar uma vez que mordem o alvo.
Ele
guarda as flechas num pequeno cesto que trouxeraàs costas e sobe na árvore,
valendo-se dos cipós que alcançam o chão. O braço esquerdo pulsa de dor, mas
não o impede. Ao alcançar uma protuberância no tronco, onde dormia uma grande
bromélia, avistou a clareira da taba de seus inimigos. Duas, quatro, seis... ao
todo oito ocas de madeira e palha. Uma taba pequena, como ele confirmara alguns
dias antes. Descansa o cesto de flechas ao lado da bromélia, e de um buraco no
tronco, desembrulha de um pano impermeável outras trinta flechas. Os ventos da
sorte permitiram que se mantivessem secas. Todas tinham chumaços de algodão
pouco depois das pontas, preso habilmente com cera. Ainda dentro do embrulho,
gravetos de pau-fogo.
Não
haveria vigia competente esta noite. Abaeté forçara seus homens ao extremo, e 'Ãmuru
se certificara que seus perseguidores estivessem bastante cansados antes de
agir. Ele avista o homem do último turno da noite, falseando a cabeça de sono e
exaustão, recostado na parede de uma das ocas.
Ele
seca as mãos num pedaço de manto que guardara com as flechas, e amarra a corda
de cipó que trouxera ao redor do poderoso tronco, fincando o dente de bronze de
um gancho na madeira antiga. Aos seus pésdeixa o rolo de corda preparado.
Ele
puxa o arco de dentro do cesto, ainda sujo de lama, e o limpa com o manto seco.
Grande como um homem, feito de osso de tapi'irussú e corda de fibra de bromélia,
está todo pintado com runas de precisão, para levar a flecha certeira ao alvo.
Testa a corda trançada, agora limpa. Inspira fundo, voltando-se para a sagrada
direção sul, fazendo uma breve oração ao Vento das Florestas, pai dos homens
das selvas. Depois se volta para o norte, a direção sagrada da guerra, e
oferece a vida de seus inimigos. Por fim, cospe para espantar o azar. A
respiração está tensa pela vingança, porque hoje não derramaria lágrimas.
Derramaria
sangue.
O
sol era ainda um pequeno halo dourado sobre a serra quando a primeira flecha
incendiária acertou o teto da casa do chefe, pouco depois da flecha serrada que
atravessou a garganta do vigia. Com velocidade, logo seis, sete, oito flechas
atingem o mesmo teto, e outras começam a atingir as ocas em torno. Atiçadas com
runas de fogo, logo as chamas ganham força.
Soa
o trombeta de guerra. Os primeiros a sair das ocas em chamas recebem as flechas
de 'Ãmuru. Ele poupa os kunumĩs, mas não as mulheres; as kunhãs jagüapy são
ferozes e versadas na guerra. O grande Abaeté surgiu em seu campo de visão,
soando a trombeta, e por muito pouco escapou das flechas mortais, pulando para
trás da oca.
–
Aos arcos! – gritou ele.
Passada
a surpresa, os jagüapy logo identificam a origem do ataque, e alguns revidam.
Duas flechas fincam na madeira aos pés de 'Ãmuru, outras próximas à sua cabeça.
Uma resvala em seu braço esquerdo, tirando sangue e fazendo a nova tatuagem
queimar de dor. Ele cessa o ataque. Sua maldição o protege do perigo fatal, mas
não é invencível, sendo por vezes permeável aos males menores. Tenta se erguer
e lançar um último ataque, mas outra flecha o impede.Hora da retirada.
Ele
larga o arco e as flechas, contrariado por não ter usado todas. Quantos teria
derrubado? Seis, oito? Ele não tem certeza; joga a corda árvore abaixo e pula.
O laço aperta e o mantém no ar, e com pressa, ele galga a árvore na descida. Há
um braço de rio entre ele e os jagüapy, e antes que eles alcancem a margem, ele
já submergiu.
<<<>>>
–
Na outra margem!
Quem
grita é um Abaeté colérico, apontando e instigando seus homens para a guerra.
Um comboio de quatro mulheres e oito homens, incluindo o próprio Abaeté,
armados de tacapemas, lanças e arcos, surgem na beira do rio. As canoas se
encontravam muito acima, de modo que eles teriam que atravessar a nado,
enquanto os últimos mantinham guarda com os arcos. 'Ãmuru escolhera o local
bem.
A
fumaça negra do incêndio já subia ao céu, enquanto os que ficaram na taba
lutavam contra as chamas que insistiam em não apagar. As crianças olhavam
aterrorizadas para as labaredas que resistiam aos baldes de água, como se fosse
bruxaria.
Talvez
fosse.
O
grupo de Abaeté, não encontrando o inimigo – seus arqueiros insistindo que
ninguém saiu da água desde que eles chegaram – se separa em três grupos. Ele
oferece pagar uma tatuagem poderosa para quem trouxer a cabeça do kuapareté, e
duas tatuagens se ele estiver vivo. As trombetas de guerra ecoam sob as
árvores.
4. A onça e o amaldiçoado
Havia
uma antiga samapé daquele lado do rio, estrada-de-cordas na linguagem da
floresta, armada entre as árvores mais altas. As folhas das copas e do cipó que
crescia na própria samapé ocultava-a de olhos desavisados, de modo que sua
existência era quase secreta.
Sobre
ela, a fada-segredo acompanhava o grupo guerreiro de Abaeté. Seus passos eram
silenciosos como os de umatapi'ira durante a noite, e seu peso sequer fazia
ranger as cordas. Sentira o cheiro de mais mistério em 'Ãmuru, e com a
curiosidade-fome que só sua espécie possui, desejava ver o desfecho daquela
batalha.
Por
entre as folhas, ela vigiava os guerreiros.
Abaeté
dos jagüapy andava acompanhado de mais três, duas mulheres e um homem. Enquanto
seus guerreiros vestiam simples túnicas de algodão ou peles, Abaeté vinha
vestido com um gibão completo de couro de onça, além de um broquel de pele de
jacaré, armadura das mais desejadas em So'üandype. Trazia ainda às costas uma tacapemade
ferro, que sabia manejar como poucos, e uma faca na cintura. Foram os anos nos
altiplanos espinhosos do norte que o talharam para a guerra, e ser um líder
entre os jagüapy, nação guerreira por excelência, era muito mais do que saber
lutar.
Seguiam
por uma trilha entre jacarandás e braúnas, sondando o caminho à frente. Súbito,
um dos guerreiros se volta para trás e se coloca contra as costas de Abaeté,
caindo em seguida com um gemido seco. Cravado em seu crânio, um machadinhode
bronze.
O
grito de guerra veio em seguida.
Saindo
detrás de uma touceira de palmas, um vulto pintado de pardo e negro investe
contra o grupo, empunhando com as duas mãos a tacapemade ferro. Uma das
guerreiras rolou para trás, erguendo e retesando o longo arco, enquanto a outra
atacou com a lança que empunhava. Abaeté afastou-se e tocou a trombeta de
guerra, chamando os demais.
Cada
jagüapy era treinado desde cedo na guerra, de modo que as estocadas precisas da
guerreira impediam que 'Ãmuru sequer se aproximasse. Por duas vezes ela riscou
sua pele, sem que ele conseguisse sequer tocá-la. Logo Abaeté uniu-se ao
embate, e à duras penaso kuapareté conseguia mantê-los afastados.
Mas
a brisa da fortuna soprava sobre ele. A arqueira, que se prostrara de lado da
batalha, vendo uma brecha na defesa inimiga, dispara seu arco. A maldição de 'Ãmuru
fez seu trabalho, fazendo-o esquivar-se no exato momento em que a guerreira da
lança entrava na linha do ataque. Quando a ponta da longa flecha surgiu entre
seus seios, ela, atônita, freou a estocada, e 'Ãmuru desceu sobre ela sua
lâmina. Sangue jorrou para cima.
Restavam
dois.
'Ãmuru
iniciou um combate mortal com Abaeté, enquanto a arqueira, ainda perplexa com
seu erro, procurava uma direção em que pudesse atingi-lo. Uma segunda flecha
zuniu, agora passando rente à cabeça do kuapareté, quase acertando Abaeté e se perdendo
com um baque agudo nos galhos acima. Foi quando o líder jagüapy investiu com um
golpe de escudo, esbarrando no braço ferido de 'Ãmuru, fazendo-o urrar de dor e
retroceder alguns passos.
Ambos
os atacantes pararam por algumas batidas de coração. O canitar de penas do
líder jagüapy jazia em pedaços num canto, e seu gibão estava riscado com os
golpes do inimigo. 'Ãmuruarfava, sujo de sangue, empunhando a tacapemacom a
direita enquanto descansava o braço esquerdo, que ardia como se estivesse em
brasa.
–
Kanguna, o que raios está fazendo? – sibilou Abaeté por entre os dentes, sem se
voltar.
Mas
a distração foi suficiente. 'Ãmuru investiu contra o líder, desviando no último
momento para atacar a arqueira, que não teve tempo de sacar sua adaga. Sua tacapemaatingiu-a
em cheio, abrindo um talo entre seu pescoço e tórax, fazendo o sangue esguichar
enquanto ele rolava para longe.
Restara
apenas um. O clamor de outra corneta indicava que os demais se aproximavam.
–
Maldito seja, Abaeté! – gritou 'Ãmuru, manchado de pardo, negro e sangue – Vou
regar essas raízes com seu sangue e urinar em seu corpo, filho de um covarde!
Eu o desafio para um duelo de vida ou morte perante os Oito Ventos!
–
Quem você pensa que é, sangue-maldito, para desafiar Abaeté dos jagüapy? Seu
sangue é estrume!Vai molhar a terra muito antes que meus guerreiros cheguem! –
e investiu.
Era
o que 'Ãmuru queria. Mesmo com sua proteção, teria uma enorme dificuldade em
enfrentar todo o bando, e isso não era necessário. Se tivesse a cabeça de Abaeté,
teria derrotado a taba.
No
meio da ofensiva, Abaeté retesou as pernas e saltou, largando a tacapema e o
escudo, transformando-se em pleno ar. A pele que vestia fundiu-se ao seu corpo,
seus membros se alongaram e mudaram de forma, seu rosto mudou. Tornou-se uma
onça tão grande quanto um homem, com músculos e garras que fariam hesitar o
guerreiro mais apto.
Mas
'Ãmuru sabia, e não se surpreendeu com a transformação. Recebeu o ataque com a
lâmina de seu tacapema, e conseguiu conter o peso do inimigo.
Abaeté-onça mordia e arranhava com suas garras sobre 'Ãmuru, diminuto ante o porte do inimigo. Com um chute na barriga da fera, ele conseguiu sair debaixo do ataque, cortando a pele do animal ao se retirar.
Abaeté-onça mordia e arranhava com suas garras sobre 'Ãmuru, diminuto ante o porte do inimigo. Com um chute na barriga da fera, ele conseguiu sair debaixo do ataque, cortando a pele do animal ao se retirar.
A
onça urrou de raiva e atacou mais uma vez. Apesar de sua agilidade, logo 'Ãmuru
estava de novo sob o peso do inimigo, e sua tacapema rodou para longe, fincando
na lama do chão. Homem e fera face a face, mão segurando a garra. A onça era
mais forte, porém, e 'Ãmuru estava desarmado.
Restava ainda
as facas de suas botas. Empurrou o animal para trás, o que exigiu muito mais do
previra, rolou sobre as costas e sacou as facas com a cambalhota. Suava e
arfava. Outra corneta urrou, terrivelmente próxima.
Teria
que acabar logo.
A
fera investiu, mas 'Ãmuru aguardou até o último momento em posição de defesa. QuandoAbaeté-onça
estava próximo, ele se abaixou e pulou para a direita, forçando o inimigo a
usar a perna traseira esquerda – o ponto fraco – para mudar a direção do ataque.
No momento em que os músculos da perna tencionaram, a onça não pode conter um
ganido de dor, se desequilibrando e abrindo a guarda. 'Ãmuru sorriu. Mirou as
pontas de ambas as facas contra o flanco da fera, abaixo da pata dianteira
esquerda, num ataque ascendente, erguendo o animal. O sangue esguichou sobre si,
acertara uma artéria. Abaeté-onça ainda teve força para empurrar, mas não pôde
se mover mais. Sua perna não respondia, seus olhos turvavam com a dordo
ferimento, e ante sua desorientação, 'Ãmuru largou as facas, circulou-o e pulou
sobre ele, montando-o e passando ambos os braços ao redor de seu pescoço. Apertou.
O
ar faltou, a perna e o flanco queimaram e o desespero lhe deu força, mas Abaeté-onça
não conseguia se livrar do abraço. O braço recém-tatuado de 'Ãmuruardeu de dor
com o aperto, mas ele não largaria a fera por nada nesse ou no além-mundo. Com
um puxão mais forte e um grito de raiva e dor, ouviu-se um estalo vindo do
pescoço da fera, e com um rugido abafado, a onça cessou de se mexer, e a sombra
de Abaeté dos Jagüapy deixou seu corpo.
Exausto,
sangrando e suado, o braço ardendo como o sol do verão mais infernal, 'Ãmuru
desabou, enquanto o felino revertia para o corpo quebrado de Abaeté-homem.
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Sobre
a alta samapé, a fada-segredo gemeu de dor. A maldição de 'Ãmuru mudou o alvo
da última flecha, fazendo-a subir e resvalar o pescoço da pequena fada,
perigosamente perto de sua garganta. Nenhum ponto vital fora atingido, porém.
No exato momento em que a flecha riscou, ela sentiu a tatuagem de proteção do ombro,
presente de 'Ãmuru durante o ritual, queimar e se extinguir. Fora poupada.
O
susto a fez perder a luta metros abaixo, mas a corneta de guerra devolveu-lhe à
realidade. Por entre as folhas, ela viu um grupo de jagüapy se aproximando nas
árvores distantes. No local da luta, três corpos, um decapitado.
A
cabeça de Abaeté jazia espetada numa lança, ainda sangrando, fincada na terra.
Seu
faro sentiu o cheiro de segredo e, antes que o grupo chegasse, ela conseguiu
avistar 'Ãmuru, que correu e saltou para a água. Em pleno ar, seu manto colou-se
à sua pele, suas costas aumentaram e seu corpo diminuiu. Mudou-se.
'Ãmuru-tartaruga
subiu o igarapé, e nunca mais retornou àquela curva do rio.
E saiuuuu :D Gostei das palavras "novas" em tupi ^^
ResponderExcluirCara,gostei demais da história, principalmente do conceito de mundo. O lance das tatuagens ficou sensacional, acho que já vi isso em outra história sua, agora não lembro qual... as palavras em tupi eu também curti. E as fadas-amora bem que poderiam fazer parte de Adventure Time xD
ResponderExcluirHaha, valeu Heitor o/
ExcluirAinda vou ler sobre a cultura tupinambá pra desenvolver mais o universo, e vou postando por aqui (:
*O* nunca tinha lido nada seu, adorei! =D Adorei o treco da tatuagens, ainda mais a gradação da construção da imagem da tatuagem nas costas (foi um daqueles momentos em q eu paro de ler só p/curtir a sensação, parecida com a de assistir a um vídeo de uma flor desabrochando que é inesperadamente inusitada e bela, só q imaginando, o q fica foda pacas). Gostei tb da ideia das fadas-segredos de da dinâmica da narrativa =D
ResponderExcluirobs: heitor, sacanagem o treco das fadas-amora, agora fiquei imaginando essas fadas gordinhas e encaroçadas XD
Valeu pelos comentários :D
Excluir'Ãmuru com certeza vai aparecer em otros contos o/