sexta-feira, 16 de outubro de 2009

[Conto] Caçadores de Nuvens

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Caçadores de Nuvens
(do universo de Aera, o mundo dos Deuses-Ventos)
(histórias de Āsh-Sharq, os desertos do Leste)


– ...e foi assim que nosso barco sobreviveu ao Tornado, o monstro mais poderoso do povo-fera!

Os demais aplaudiram a história, e ergueram suas canecas de mel-cerveja. Foi uma boa história, embora nem todos acreditassem nela, boa para aquela fria noite de outono. Eram todos aeronautas ali, todos presos naquela ilha enquanto o tempo não melhorasse. Seus aeronavios esperavam no porto, ancorados e protegidos pelo quebra-vento, sem poder zarpar enquanto seus capitães não permitissem. Ninguém enfrentaria os ares naquela tempestade, que já durava alguns dias, e enquanto isso os tripulantes se juntavam para beber, jogar e principalmente, contar as histórias de suas viagens. Aquele que acabara de falar se sentou, e então o lugar foi tomado pelo barulho de várias vozes. Somente os tripulantes do Fura-Nuvens nada falavam. Haviam chegado durante o dia, exaustos, com seu aeronavio praticamente morto. Provavelmente foram pegos pela tempestade, pensavam os outros, mas a verdadeira razão era terrível demais para que contassem. Perderam seu capitão, do qual não mais lembravam o nome, e muitos de seus companheiros. Apesar de felizes por estarem vivos, o terror ainda assombrava suas mentes. Não se impressionaram com a história recém contada, não; o que viveram nessa última viagem foi forte demais. Aquelas lembranças ficariam gravadas em suas mentes como os glifos de uma âncora rúnica, e ainda agora as cenas dos últimos dias dançavam em seus pensamentos...

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O navio meneou contente com a brisa quente do leste. O sol nascia.

As fadas-aurora tingiram o horizonte com suas asas de variados tons de vermelho, enquanto um bando de corujas-macaco passava próximo ao tombadilho do aeronavio. Omali já estava no convés, enquanto os outros ainda dormiam. Observava o nascente que tingia as nuvens de rubro, e suspirou preocupado; o dia traria chuva.

– Ka Omali! – a voz grave de Zalmaquin gritou do tombadilho – Acorde os homens! Haverá chuva, queiram os Ventos que não seja uma tempestade. Vamos, imediato, preciso que verifiquem as velas!

– Sim senhor, capitão!

Correu para os dormitórios, gritando para que levantassem. Uma tempestade nos céus é tão ou mais terrível que uma no mar, pois os ventos são tremendamente mais poderosos. Era necessário verificar as velas, checar as hélices e reforçar as amarras; todos os homens precisavam trabalhar, e o aeronavio logo se encheu de barulho.

A tempestade os atingiu perto do meio dia. O timoneiro teve que lutar para segurar o barco, que foi arrastado de corrente de ar para corrente de ar, puxado ora para os recifes voadores, ora para as encostas rochosas das ilhas do céu. Com muito custo mantiveram as velas presas, e só depois de horas sufocantes, foram deixados em paz. O dia estava nublado e escuro, e o Fura-Nuvens se encontrava preso em uma corrente ascendente, de rumo incerto. Nada que o timoneiro fizesse conseguia tirá-los daquele curso, e ficaram assim por dois dias, quando finalmente caíram num grande vale entre duas ilhas do céu, onde a corrente se dispersava. O capitão chamou o imediato.

Omali encontrou um Zalmaquin preocupado, atrás de uma mesa cheia de mapas. Seu chapéu tricorne descansava na estante, e Maimune estava pousada em seu ombro. A pequena mulher-beija-flor sorriu cumprimentando-o, quando ele se sentou.

– Não comente nada disso com os homens, imediato. Ouça... olhei nos mapas uma dúzias de vezes e não encontro, raios, nenhum ponto de referência... Chequei o altímetro e, veja só, ele indica que estamos a mais de 35 estádios de altura! Deve estar quebrado, com certeza... Por isso, não posso dizer onde estamos, por Eurus!

– Perdidos, capitão?

– Sim, perdidos. Acima de nossa rota usual, e definitivamente longe dela. Ouça... Chame dois homens nos quais tenha confiança e façam uma pequena vistoria nos arredores. Descubra onde infernos nos metemos. E mais uma vez, não conte nada aos outros! Você bem sabe o que uma tripulação desorientada é capaz de fazer.

– Sim senhor, capitão – e deixou a cabine.

Voltou ao convés e procurou por Belossab e Silvas. O primeiro era o melhor arpoador de nuvens do aeronavio, e o segundo era um estrangeiro do País do Sul, habituado às florestas e excelente guia. Prepararam um bote e se lançaram no ar.

O vento ali era ameno, um remanso causado pelas duas ilhas, e remaram tranqüilos. Era um lugar magnífico, cheio de pequenos rochedos flutuantes com densa vegetação e até com pequenos regatos, que escorriam céu abaixo. As ilhas também eram cheias de grandes árvores, que se projetavam das encostas, e variados tipos de aves desconhecidas revoavam com sua passagem. Omali procurava por indícios de presença humana. Seu olho era o melhor da tripulação, e assim que via algo, lançava mão da pequena luneta. Os ares nem sempre são seguros, principalmente em ilhas inabitadas, por isso Belossab carregava seu arpão, pronto para qualquer tipo de problema.

Foi quando uma revoada de fadas passou rente a eles. Pequenos como Maimune, mas de outra espécie. Pareciam humanos diminutos, com asas feitas de folhas e corpos de cores vivas, como azul e violeta.

– Povo eudaim! – gritou-lhes Omali – Povo eudaim! Por favor, peço sua atenção!

A nuvem violácea parou a alguma distância e se voltou para o pequeno bote. Dois deles se destacaram e se aproximaram, um ser-homem e um ser-mulher. Pararam à distância de um remo e meio, com uma expressão curiosa. Omali perguntou:

– Onde estamos, fadas, se ao norte ou ao sul, do arquipélago de Talrrajar?

– O casal real do ciano-povo pede um presente em troca das informações que os humanos lhes pedem – respondeu o ser-homem, numa voz inesperadamente alta.

– Um presente dos navegantes para o ciano-povo! – repetiu o ser-mulher.

Os três aeronautas pouco tinham, então Omali teve de ofertar sua luneta.

– Eis nosso presente ao casal real – disse.

A nuvem violácea se aproximou e tomou, à muitas mãos, o objeto. Afastaram-se o mais rápido possível, voltando para sua região segura.

– Um belo presente, navegantes perdidos – disse o ser-homem – Ouçam nossa reposta: não conhecemos esse arquipélago, mas com certeza está muito abaixo daqui, pois não vemos humanos com freqüência. Essa ilha está muito acima de suas cidades.

– E um aviso, destes que aqui moram – disse, por sua vez, o ser-mulher – Cuidado, ó filho, com o Pargarávio prisco! Os dentes que mordem, as garras que fincam! Evita o pássaro Júbaro e foge qual corisco do frumioso Capturandam.

E dizendo isso, juntaram-se aos demais e partiram, sumindo rapidamente atrás de um pequeno bosque. Os três se entreolharam.

– Que era aquilo? Um poema? – perguntou Belossab.

– Não entendi muito bem, mas falaram para ter cuidado com alguma coisa, Ka Belossab. Fique atento ao seu arpão, seu cabeça de vento!

Remaram mais um pouco, e resolveram atracar. Amarraram o bote a uma frondosa castanheira, que nascia verticalmente à encosta, e por ela tentaram subir à ilha. Estavam realmente muito alto, observava Omali, pois mal divisavam o continente abaixo deles, coberto de nuvens. Seria uma queda e tanto, pensava, tratando de se agarrar com força ao tronco da árvore. Silvas se moveu agilmente, como se estivesse em terreno plano, e os ajudou a alcançar terra firme. A mesma habilidade que o povo do País do Leste tinha em galgar os ares, tinham os sulistas para cruzar as florestas.

Belossab carregava seu arpão. Avançavam cautelosos por entre as árvores, guiados por Silvas, abrindo caminho com suas cimitarras. Andaram pouco até que caíram em uma cavidade no solo. Um grande ninho, onde caberiam dez homens, cheio de ossos! Ouviram então um bater de asas e um poderoso guincho, e o eco perpetuou a altivez daquele som. Lembraram-se das palavras do ser-mulher: o Pargarávio.

– Voltem, voltem, para o barco! Temos que sair daqui, rápido! – gritou Omali.

Voltaram velozes por onde vieram. O tamanho do ninho dizia que a criatura era grande! Alcançaram o bote aos trambolhos, e remaram com força até o aeronavio. Na metade do caminho, ouviram o guincho de novo. Os três suavam, remando o mais rápido possível, e a essa altura os outros tripulantes já tinham ouvido o poderoso som e exclamavam, preocupados. Omali virou-se para eles e gritou o mais alto que pôde:

– Içar velas, seus cães! Rápido, trabalhem!

O desespero de sua voz foi tamanho que os aeronautas estavam prontos para zarpar antes mesmo de o bote os alcançar. Os três apenas pisaram no convés, o aeronavio meneou para o norte e partiu. Zalmaquin logo apareceu no tombadilho:

– Imediato, que significa isso?!

– Um monstro, capitão, quase tão grande quanto esse navio! As fadas nos avisaram, por isso dei ordens para partimos.

Zalmaquin concordou, contrariado. Navegaram, enquanto os três olhavam preocupados para as árvores, temendo que o Pargarávio surgisse. Belossab se posicionara no arpão mecânico, mas foi em segurança que contornaram a ilha mais acima.

O capitão foi ter com eles, em particular.

– Digam-me, homens, que puderam descobrir sobre nosso paradeiro?

– As ciano-fadas disseram que estamos muito acima de qualquer cidade humana, capitão, mas foi só isso – respondeu Silvas – Depois, ouvimos aquele monstro e tratamos de voltar sobre nossas próprias pegadas!

– A Brisa da Graça soprou sobre vocês lá atrás – respondeu o capitão – Uma sorte que não tenham sido vistos. Esses céus são desconhecidos, temos que redobrar a cautela... Ka Omali! Ordene aos homens do cesto da gávea que fiquem atentos e comuniquem ao menor acontecimento estranho, entendido?

– Sim, capitão.

E voltou para sua cabine, seguido por sua fada de ombro.

Contornaram a ilha, na esperança de achar uma corrente descendente segura, mas não encontraram. O cair da noite também não trouxe novidade, então resolveram navegar para Oeste, ao sabor do vento. Havia uma ilha nesta direção, e foram para lá.

A lua nasceu, cheia, iluminando a noite. Hora da refeição. O capitão e os oficiais dirigiram-se ao refeitório; quando acabassem, seria a vez dos demais. A comida ainda estava sendo servida, quando a noite escureceu. Gritos do convés.

– O que foi agora? – exclamou Omali, com uma coxa de auri-gaivota na mão.

Os tripulantes se reuniram e olhavam estupefatos para cima. A lua tinha sido encoberta por uma grande sombra, muitas vezes maior que o Fura-Nuvens, que se espalhava por todo o horizonte visível. Somente quando seus olhos se acostumaram à escuridão, puderam entender. E o aeronavio tremeu, amedrontado. À sua frente planava uma gigantesca criatura, com duas colossais asas castanhas e duas garras. A cabeça era de lagarto, mas tinha o bico dos gaviões. Seus olhos eram do tamanho da vela principal, e refletiam a noite quais gigantescos espelhos. Mirava o Norte. Povo-fera ou fada?

– Aos arpões, arpoadores! Tire-nos daqui, timoneiro! – sibilou o capitão. Perigoso ou não, não seria sensato ficar pra descobrir. O aeronavio começou a manobrar, lentamente, quando a criatura se voltou devagar para eles. Ouviram um ronco de trovão, que pouco a pouco tomou semelhança com algo que pudessem entender:

– Humanos... Que fazem tão alto? O dragão-roca pergunta.

Silêncio. Um dragão-roca?! Todos os tripulantes já tinham ouvido falar da lendária criatura, um ser de asas tão grandes que podiam encobrir o sol por horas quando voava. Um dragão-roca! Dizia a lenda que conheciam todos os Quatros Céus, e quem lhe ofertasse um nome, podia perguntá-lo sobre qualquer segredo dos ares. Vários navegantes sonhavam em encontrá-lo, para descobrir a localização de tesouros perdidos. Estavam diante de uma lenda viva dos céus!

Os homens não se atreviam a falar, maravilhados demais. Omali acariciava o mastro principal, tentando acalmar o aeronavio, que tremia.

– Dragão-roca! – gritou o capitão, subitamente motivado, subindo por uma das escadas de corda – Que a Brisa da Graça abençoe nosso encontro! Grande dragão-roca! Ajuda-nos, ó dragão!

A colossal criatura aproximou sua gigantesca cabeça. Seus olhos refletiram o aeronavio e todos os seus tripulantes, mas quando estes os miraram mais profundamente, o que viram foram rostos de outras pessoas, e palavras flutuantes; os nomes perdidos de muito tempo atrás.

– Diga seu nome e o que deseja, ó viajante.

– Meu nome... – o capitão hesitou por um breve momento, mas em seu ombro Maimune exultava, motivando-o – Eu sou o Capitão Zalmaquin, líder desse aeronavio. Somos caçadores de nuvens, grande dragão, e estamos perdidos – Um burburinho preocupado dos aeronautas se fez ouvir – É verdade o que diz a lenda sobre sua espécie?

– É verdade, Zalmaquin. Um nome por um segredo.

Outro burburinho, agora exaltado. Todos os olhares convergiram para o capitão. Mas... Zalmaquin realmente desistiria de seu nome, famoso nos céus do leste?

– Grande dragão-roca! – seus olhos brilhavam – Pergunto-lhe o caminho para descermos aos níveis mais baixos, mas um caminho que seja a rota de uma nuvem-tesouro, uma tão grande quanto esse aeronavio! Por esse segredo, dou-lhe de bom grado meu nome, Muktar Zalmaquin tou-Nautir.

– Que assim seja.

O grande dragão ergueu sua garra na direção dele, e s fechou sobre o ar acima de sua cabeça. O capitão ficou estático, e somente quando a criatura levou o que quer que tenha agarrado ao bico e engoliu, voltou ao normal. Então, ninguém mais pôde se lembrar como se chamava aquele homem, nem nunca se lembraria. O dragão-roca falou:

– Ouça, Sem-nome. Quando raiar o dia, siga para o sul, até uma corrente transversal, e tome-a. Navegue todo o dia e você encontrará a nuvem que procura. Mas cuidado! Tome a corrente vizinha antes do cair da noite, para descer, ou então subirá tão alto quanto nenhum humano jamais subiu, até o grande Terror!

Dizendo isso, o dragão abriu ainda mais suas asas e se afastou, tão velozmente que o ar fez o aeronavio dançar. Voou para longe, mas mesmo depois de horas ainda era possível ver sua sombra no horizonte. O capitão exultava.

– Vocês ouviram, seus cães! Travem a âncora rúnica aqui, e se prepararem para navegar amanhã o dia inteiro! A partir de hoje, chamem-me Capitão. Partiremos bem cedo. Um tesouro nos aguarda! – e um grito de alegria partiu da tripulação. A âncora foi travada no espaço, e naquela noite mal puderam dormir.

Amanheceu, mas nem bem o sol nascera o Fura-Nuvens alongou suas membro-asas e iniciou viagem. Navegaram animados o dia inteiro, sonhando com ouro. A tripulação nunca esteve tão empenhada! No final da tarde, gritaram do cesto da gávea:

– Altocumulos à vista!

Todos se alvoroçaram, e até o capitão surgiu no convés. Afinal, o Fura-Nuvens era um caçador de nuvens, um aeronavio pirata que vivia do espólio de tesouros. As altocumulos são nuvens peculiares, usadas por reis e regentes para o feitiço das Nuvens Mensageiras. Carregam ouro em seu bojo.

– Vamos, seus cães do céu! É a nossa nuvem! Vejam como é grande! Arpoadores, em posição; homens, manobrar velas; timoneiro, mantenha o curso! – sorriu e se voltou para o navio – Veja, Fura-nuvens, finalmente uma caçada!

Ele balançou em resposta, satisfeito, arqueando suas membro-asas, animado. Seu espírito sempre fora aventureiro, desde o momento de sua construção; era aquela tensão e expectativa que o tornava tão vivo.

Os três arpoadores se posicionaram em seus lançadores mecânicos. Os demais correram para as amarras das velas, enquanto os homens da gávea desceram de seu perigoso posto. A nuvem vinha rápido, e precisavam se preparar para o choque do feitiço. Quando a altocumulos se aproximou há poucas braças da proa da grande embarcação, os arpões voaram. Somente o de Belossab atingiu o alvo.

Um deslocamento de ar empurrou o Fura-nuvens para traz, e todos tiveram que se segurar. Era o choque do feitiço, uma prevenção contra ladrões. Logo, outro e mais outro os atingiram como ondas, mas eram apenas uma amostra do que estava por vir.

– Subir velas! O grande choque vai arrebentá-las! – gritou o capitão.

E a nuvem passou por eles, veloz, ferida. Logo a corda do arpão retesou, e os tripulantes sentiram o verdadeiro tranco. Dois foram lançados no espaço.

– Homens em queda!

Omali e um outro correram para os ganchos salva-vidas, que caem mais rápido do que qualquer coisa, e os lançaram para baixo. Enquanto isso, o Fura-nuvens era arrastado pela altocumulos, e os demais arpoadores se preparavam para outro disparo. Logo, mais dois arpões feriram o dorso branco.

– Vamos, timoneiro, segure essa maldita! – berrou o capitão.

– É muito forte, capitão! Vai arrebentar o leme!

– Faça o que eu mandei, seu rato de convés!

Um outro homem correu para ajudar no timão, e outro choque de feitiço sacudiu o barco. O movimento brusco lançou para fora barris de mel-cerveja e caixotes de provisões, e homens correram para amarrar os restantes. Os ventos tornaram-se fortíssimos então, pois deixavam a região de remanso, mas a velocidade da nuvem parecia finalmente diminuir. Agora, ficaram apreensivos e procuraram onde se segurar.

– Preparar para o grande choque! – gritou Omali, ao içar o homem que caíra.

E o choque veio, mais poderoso do que todos os outros. A corda de um arpão arrebentou, o leme se espatifou, a retranca se soltou e arremessou um homem para fora. Um outro correu para salvá-lo, mas a retranca ricocheteou e acertou-lhe a cabeça, lançando-o inconsciente no espaço. Ninguém mais ousou se mover enquanto a verga não se estabilizasse. Então, os ventos diminuíram, a nuvem parou. O feitiço se quebrara!

Puxaram a nuvem, muito contentes, pois nunca viram uma tão grande. Todos se juntaram para trazê-la a bordo, e quando conseguiram, o Capitão foi abri-la. Subiu sobre a superfície branca, e com sua cimitarra de prata, abriu-lhe o bojo com um rasgo. Toda a tripulação gritou de alegria. Em seu interior, seis grandes arcas de ouro.

– Ka Omali! Ka Omali, venha cá, seu maldito! – ele gargalhava – Organize os homens, ajudem-me a tirar nosso tesouro!

Os aeronautas amarraram a altocumulos, outros ajudaram a carregar as arcas. O capitão supervisionava tudo, contentíssimo, ignorando o sol que descia. Mas o timoneiro se aproximou, preocupado, e disse-lhe a última coisa que queria ouvir:

– O leme se partiu.

Uma sombra escureceu o rosto do capitão. Seria impossível consertá-lo antes do cair da noite, o sol já se punha. Era preciso fazer alguma coisa!

– Travar âncora! – berrou – Amarrem bem essas velas! Rápido, seus animais!

Mas, nem bem o sol desapareceu no horizonte, os ventos ficaram mais fortes. Todas as seis arcas haviam sido levadas para o convés inferior, e todas as velas haviam sido recolhidas, mas mesmo assim o barco estava sendo puxado. A âncora rúnica, travada no espaço, era a única coisa que impedia o aeronavio de ser arrastado corrente acima. E os ventos não paravam de piorar.

– Vai arrebentar! – gritou alguém.

O estalo seguiu ao aviso, e a força dos ventos separou o Fura-nuvens de sua própria âncora, lançando-o mais e mais para frente, para cima. O timão rodava no tombadilho, inútil, e sem o leme o aeronavio rodopiava em seu curso. Um homem caiu do convés, empurrado pelo ar, e ninguém se atreveu a correr aos ganchos para salvá-lo. Agarravam-se, procurando abrigo no convés inferior. A corrente era poderosa demais, e sem leme ou âncora, seriam levados até que se dispersasse.

Foram arrastados por muito e muito tempo. Dias pareciam ter se passado, mas o sol não nascia, era sempre noite, e cada vez mais escura. De certa feita, o mastro principal se partiu, e então tudo o que puderam fazer era rezar aos ventos... E subiam. A comida começou a acabar e o ar ficava rarefeito. Homens facilmente desmaiavam, e três morreram por inanição, entre eles Belossab. O desespero. Fizeram de sua carne comida.

No que seria o terceiro dia naquela corrente fatal, os ventos acalmaram um pouco. O capitão e Omali puderam subir ao convés.

– Que frio invernal! Veja, imediato, as estrelas estão diferentes, e a lua está tão próxima! Não vejo nuvens aqui em cima, e o continente está tão longe que vemos as bordas do mar! Céus, como está difícil respirar... Será que subiremos mais?

– Não sei... Veja o desastre no mastro, capitão... Não temos como controlar o Fura-nuvens, só nos resta orar por uma corrente descendente. E o dia que não nasce?

– Uma noite eterna... Mas, o que foi, Maimune? – a fada de ombro esvoaçava preocupada, apontando exasperada para uma região escura mais acima. Ali não havia estrelas – Diga, o que foi?

Ela apontava para a mancha escura, e sua voz fina sussurrou uma palavra que ele não esperava ouvir, nem em seus sonhos mais terríveis.

– Meskotos?! – exclamou.

O grande reino do povo-fera, fora do alcance do mundo, o reino escuro, nos limites do céu. Próximo a ele, os ventos são tão terríveis e tão intensos que dobram a própria realidade sobre si mesma, criando incontáveis vórtices e turbilhões de muitas dimensões. Aquele que ousar se aproximar será destroçado em mil pedaços, e mesmo quem lograr sobreviver, ficará para sempre preso a mil existências, sem consciência e sem jamais poder retornar ao que era. E estavam indo para lá.

– Que o grande Éolo nos proteja! – gritou – Estamos na borda do inferno! Omali! – seu olho então adquiriu o brilho da loucura – Conte isso aos homens, para que preparem seu caminho para o outro mundo. Meskostos! Estamos condenados, condenados! Solte-me, já disse, deixe-me! Estarei em minha cabine, minha preciosa cabine... Estamos condenados... – e ele e Maimune se foram.

Omali, desesperado, desceu as escadas.

A notícia enlouqueceu mais cinco homens, que correram para o tombadilho e de lá se precipitaram para o espaço. Omali e mais alguns entoaram a canção da morte de Kaikias, enquanto outros oravam, e outros ainda dormiram, já sem forças para nada. Então, um poderoso solavanco sacudiu a todos, e o aeronavio girou com extrema violência. Rodaram, subiram e desceram, e então o espaço se comprimiu terrivelmente, já não havia navio ou homens, mas uma turbulência dos sentidos. Todos imploravam pela morte. A luz sumiu, o barulho tornou-se ensurdecedor, e seus corpos voavam. Dor e escuridão, dor e escuridão, até que sobrou apenas o escuro, e então mais nada.

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Omali se lembra que acordou envolto em sangue seco, e membros decepados, sem saber por que milagre estava vivo. O Fura-Nuvens navegava suave, embora despedaçado, e a luz do dia entrava pelas frestas. Restava apenas uma das arcas de ouro, aberta e quase vazia, ao lado de um grande rasgo no casco. Outros sobreviveram também, e correram todos para o convés superior. Desciam. O aeronavio não tinha mais nenhum mastro ou vela, mas suas membro-asas o conduziam. O tombadilho havia sido arrancado do convés, juntamente com a cabine. Nem sinal do Capitão.

Mas desciam. Era uma sorte o Fura-nuvens ainda estar vivo, se era. Foi o olho de Omali que avistou, então, o porto onde desatracaram. O dia estava nublado, traria chuva. Eram agora apenas sete homens, mas estavam vivos. Pagaram hospedagem e comida com o pouco ouro que sobrou, e ao cair da noite, quando a tempestade atingiu o porto, decidiram tomar mel-cerveja na estalagem central. Tentariam esquecer aquela viagem, nem que fosse por uma noite. Nunca conseguiram.

Um comentário:

  1. excelente conto! =D adorei os elementos desse mundo, que p/mim são o ponto alto deste conto, fascinantes =D

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