quinta-feira, 8 de outubro de 2009

[Conto] A Pena da Fênix, parte 2

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Saber a hora da sua morte não é tão assustador assim. Bom, pelo menos não pra mim. Desde aquele dia no deserto, e aquela foi a primeira vez, descobri a sensação de saber. Eu tinha uns dezessete ou dezoito anos, já não me lembro direito, e acordei no acampamento da caravana com um frio estranho na barriga. Eu sabia que morreria naquele dia.

O dia estava bonito para se morrer. Apesar de estarmos cruzando o meio do deserto, as nuvens nos davam algumas sombras e o vento nos refrescava o corpo. Os camelos estavam mais dispostos e os outros viajantes acordaram bem. Naquela época eu ainda era Khalid, ou melhor, Khalid al-Said Ibn Hassan Ibn Aali al-Misri, um nome realmente muito longo, agora que já perdi o costume. Viajava com a caravana de meu tio Shadi para aprender o oficio dos mercadores – como meu pai queria – ou simplesmente para viajar, como eu desejava. Deixei minha família no oásis onde morávamos, e já fazia alguns meses que cruzávamos as areias indo de cidade em cidade. As rotas naqueles anos eram perigosas, estávamos no meio da terceira cruzada. Os cruzados e nosso povo estavam em trégua, garantindo passagem tranqüila para as caravanas, mas ainda havia ladrões. Lembro-me que, daquela vez, nos acompanhava um respeitável xeique de Alepo, que juntou sua caravana à nossa quando nos encontramos no deserto.

Normalmente as pessoas se desesperariam se soubessem que este era o último dia de sua vida, tentariam fazer tudo que nunca fizeram ou outra sorte de loucuras, mas eu era diferente. Eu tinha ela. Dentro de um compartimento no meu cinto de couro, costurado por meu pai e muito bem protegida, eu guardava o tesouro de minha infância: uma pena vermelha. Meu amigo e os outros da aldeia não acreditaram nela, mas eu tinha certeza de que era real: eu vi com meus próprios olhos quando a fênix a deixou cair. Eu acreditava nas lendas, e por isso não temia o último dia da minha vida.

Quando todos arrumaram e dobraram suas tendas, começamos a caminhada. Havia algo estranho e pesado no ar, eu sentia, mas os outros nada percebiam. Comecei a ficar preocupado. Não era a morte em si, pois eu sabia que era impossível escapá-la. Eu me preocupava com a causa. Se eu me perder para morrer nas areias, não haverá problema. Já se eu for morto por alguém da caravana, eu poderia ser roubado... Não, nenhum destes ousaria fazer isto ao sobrinho do chefe, muito menos os homens que acompanham o xeique. Continuei a pensar e a pensar, mas não encontrei o motivo que findaria minha vida naquele dia. Como tudo na vida, e principalmente nos assuntos da morte, era preciso esperar.

Lembro-me de meu tio me ter perguntado o porquê daquela preocupação toda, sendo o dia tão fresco e agradável para viajar. Pensei em responder-lhe sinceramente, mas então me contive; ele não acreditaria o que eu esperava. Respondi-lhe qualquer coisa, não me lembro, e fiquei contente quando ele me deixou sozinho. Pobre tio... Essa seria a última vez que falaria comigo, pois sua vida também terminou no final daquele dia. Mas na época eu não sabia, ou antes ignorava, que eu só tinha conhecimento sobre a minha morte, e a de ninguém mais.

Foi naquela noite. Apesar do dia perfeito, o pôr do sol trouxe frio e ventos gelados. Não queríamos parar a viagem, pois faltava pouco para a próxima cidade, mas não pudemos continuar. Baixamos acampamento. As fogueiras mal se mantinham acesas, e sentíamos muito frio. Cobrimo-nos com todas as cobertas de nossas tendas. No deserto, o dia e a noite são tão diferentes como o sol e a lua. Eu não dormiria, esperando minha morte. Aconteceria no meio da noite, eu sabia; não chegaria a ver outra vez o sol, não naquela vida. Por isso não dormi. Esperava ansioso.

Então o barulho abafado de luta. Corri para a entrada da tenda, e vi, iluminados pela lua, homens com o rosto coberto atacando sorrateiramente alguns homens do xeique. Lutavam com furor, e ainda assim em silêncio, e parecia que os ferimentos que recebiam não causavam dor. Na época eu não sabia, mas estavam drogados com haxixe. Assassinos! – pensei – Estão atrás do xeique! Corri, escondido, para a tenda de meu tio para avisá-lo, mas estava vazia. Confuso, corri para a tenda do xeique. Dois guardas estavam caídos na entrada, sem se mover. Verifiquei depressa: estavam mortos. Não havia mais sons na noite além do vento, o resto do acampamento parecia ignorar o ataque. A Ordem dos Assassinos é famosa por sua discrição. E por sua eficiência. Tomei uma das cimitarras dos guardas caídos e entrei na tenda. Atravessei a pequena ante-sala vazia e fui para o quarto. Nada havia me preparado para aquilo. Meus olhos já presenciaram muita coisa desde então, mas aquela cena ficou gravada como um quadro marcado a fogo em minha mente: meu tio com a garganta cortada, a roupa empapada em sangue, sentado na cama ao lado do xeique, apunhalado no peito. Mais dois ou três servos do xeique jaziam caídos no chão, e o cheiro da morte impregnava o ar. As lágrimas brotaram raivosas de meus olhos, enquanto eu apertava com força a cimitarra em minhas mãos. Malditos! Malditos sejam!

Saí correndo, cortei a corda que prendia um dos cavalos e montei-o depressa. Eles mataram meu tio... Meu pobre tio! Eu estava disposto a caçar os malditos até o fim do mundo! Cavalguei veloz e logo deixei o acampamento. Galguei uma grande duna de areia, e de seu topo pude divisar um grupo de cavaleiros ao longe, fugindo, iluminados pela pálida luz da lua. Eram eles. Precipitei-me em sua direção.

Seus cavalos eram rápidos, mas o cavalo que eu pegara era o animal do próprio xeique, e sua raça era poderosa! Logo os alcancei. Eu brandia em círculos minha cimitarra roubada e gritava com fúria. Ainda ouço meus gritos solitários na noite do deserto:

_ Voltem, malditos! O sangue de Shadi clama pela justiça de Deus!

Eu fui um tolo. O último deles se voltou para mim, e gritou algo para o da frente. Este puxou seu arco com uma velocidade incrível para quem estava cavalgando. A corda vibrou. Senti uma pontada poderosa em meu peito e fui arremessado ao chão. Meu pé se prendeu aos estribos e por alguns segundos miseráveis fui arrastado pelo meu cavalo. O estribo finalmente estourou e fiquei para trás, gemendo, enquanto o som dos cascos de cavalo se afastava e a poeira enchia o ar. A dor era horrenda, e já não tinha forças para me levantar. Arrastei-me um pouco, e meu peito ardeu. Veneno. Os assassinos não eram conhecidos por menos. Lembrei-me então da minha morte, que eu esperara o dia todo, e lembrei do meu tesouro. Tive um medo desesperado de perdê-lo, e este pensamento me perturbou muito mais que minha própria condição. Abracei meu cinto de couro com força. Minha consciência falhava e minha vida se esvaía. Foi neste momento, quando a lua pareceu brilhar mais forte, que eu a vi, de pé sobre um pináculo de areia, e sua aparência não era tão terrível quanto sua fama. Era ela quem eu esperara o dia todo, e agora ela estava ali, olhando para mim, sorrindo. A morte estendeu um braço em minha direção, mas não podia me alcançar. E eu sabia o porquê. Fechei os olhos com a dor aguda, e então não senti mais nada.

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Os outros viajantes da caravana me encontraram por acaso na manhã daquele dia. Disseram que eu estava nu, prostrado no chão, envolto em areia e cinzas ainda quentes. Disseram que eu abraçava com força uma pena vermelha, e que eles a guardaram para mim. Não havia nem sinal de minhas roupas ou do cinto de couro, apenas restos de cinzas e poeira. Ficaram bastante surpresos, e louvaram o grande Deus por eu ter sobrevivido, diziam que era um milagre. Devido aos assassinatos de seus chefes, as caravanas se separaram; a minha decidiu retornar ao oásis onde morava minha família, a fim de enterrarem meu tio; a outra preferiu continuar viagem até a próxima cidade. Os assassinos queriam a vida do xeique, e meu tio tentou protegê-lo. Na certa ele tinha idéias que iam contra as da Ordem. Morreram ambos por um jogo político, como é tudo o mais na vida humana. Apenas um jogo. O funeral do meu tio foi belo, e foram muitas as lágrimas que vertemos por ele. Ele era um bom homem, e o amávamos muito. Quando meu pai soube da minha imprudência, censurou-me com tristeza, e disse que não agüentaria se também eu tivesse sido morto. A Ordem dos Assassinos é poderosa. Mas junto com a tristeza, havia em mim alegria. Experimentar que minha pena era verdadeira me trouxe grande contentamento. Eu não precisaria mais temer a morte, não enquanto eu a tivesse comigo; assim contavam as lendas. Meu único temor ao longo de todas essas vidas foi o de perdê-la para sempre, mas quis a sorte que isto ainda não acontecesse. Esta foi a primeira vez que eu soube que minha morte viria. A sensação é estranha, pesada. Você sente o ar diferente, os acontecimentos mais nítidos, as coisas ganham mais significado... Escute bem, já morri muitas e muitas vezes, e ainda assim todos os dias que esperei a morte passo pela mesma sensação da grandeza das coisas. É, morrer é coisa séria.

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