sexta-feira, 16 de outubro de 2009

[Conto] O Olho de Jaguar

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(do universo da Grande Floresta)

O sol se punha. Jaí-Eá andava depressa, conduzindo o jovem neto do Chefe. Um de seus deveres, como o guardião da tradição, era passar as lendas da tribo adiante, recontá-las para que os costumes e valores não se perdessem. Ele devia fazê-lo sempre que um jovem da tribo vencesse o Embate, ou seja, enfrentar e vencer sozinho um dos tigres do bando que vivia próximo a aldeia.

Os Tigres são sagrados. Foram os Cinco Grandes Tigres que criaram o mundo e todos os seres, e foi aquela tribo de tigres que ensinou as coisas do mundo ao primeiro homem e à primeira mulher. Por conta disso, os homens construíram sua aldeia nas altas árvores da floresta, exatamente sobre o lar daqueles animais; ambos se protegem e nutrem respeito mútuo.

O Embate foi uma aliança ancestral entre um antigo Chefe da aldeia e o líder do bando: se o homem vencer o tigre, este empresta sua força ao homem; se o tigre vencer o homem, este empresta sua habilidade ao tigre. Foi assim e é assim há muito tempo, antes mesmo de Jaí-Eá ser o mestre da tradição. O guerreiro que perder o Embate se torna alimento para o oponente, e ninguém chora sua morte: a tribo dos homens-tigre o honra como a um herói e tem seu lugar entre os grandes. Sempre foi assim, desde que Jaí-Eá se lembra: qualquer que seja o resultado, a tribo não sente tristeza. Dessa vez foi o neto mais velho do Chefe, Jaí-Kaguá, quem venceu; por conta disso se tornará Jaê-Kaguá, um homem-tigre. A cerimônia de batismo ocorreria entre ele e Jaí-Eá, àquela noite, e entre ninguém mais. Tudo isso passava pela mente do velho guardião, enquanto levava o jovem guerreiro para a colina mais alta. O sol se punha, e eles tinham que se apressar.

Jaí-Kaguá estava eufórico. Trazia no pescoço uma presa branca, atada a um cordão de barbante, o símbolo da tribo. Hoje à noite, receberia a segunda presa de tigre e um nome novo, que indicasse que era um campeão do Embate, que possuía a força do tigre. Perdendo-se em devaneios, mal acompanhava Jaí-Eá, que se impacientava com sua demora. Mandava a tradição que o guardião dos costumes realizasse o novo batismo, a sós com o vencedor, e nenhuma outra pessoa poderia saber do que se trata, apenas os que já passaram pela cerimônia. Também na tribo dos tigres acontecia assim, e o seu batismo era um mistério para os homens da aldeia. Mas, onde está Jaí-Eá? – súbito, se pergunta – Estava aqui, mas não mais... Ouve um assobio, e ele vê o velho guardião subindo, já alto, uma escada cavada numa árvore robusta.

_ O jovem se atrasa! O sol se pôs, e tão logo devemos estar no lugar!

_ Espere por Jaí-Kaguá! – gritou o jovem preocupado – Não haverá mais demora!

_ Assim espero, pois a lua já nasce, e então seu batismo não será.

Àquelas palavras, o jovem se projetou com força sobre a escada na madeira, e subiu tão rápido que quase derrubou Jaí-Eá. Lá em cima, uma ponte firme ligava a árvore à outra, e à outra mais adiante. A terceira ponte dava para o topo de uma colina, que se erguia altaneira sobre todas as árvores ao redor, sobre toda a floresta. Ali chegando, disse o velho:

_ É aqui.

Jaí-Eá pegou duas esteiras e eles se sentaram de frente um para o outro. Depois, tirou uma pequena panela de pedra da bolsa que trazia, e logo fez fogo dentro dela. Tirou uma goma espessa de um pequeno pote de barro e começou a mascá-la. Após algum tempo, deu-a também a Jaí-Kaguá. A noite chegava:

_ Que o grande Jaguar te abençoe, Jaí-Kaguá – disse ele.

_ Que o grande Jaguar te abençoe, Jaí-Eá – respondeu o jovem, como mandava o costume.

_ O que venho te contar é a história contada a todos os guerreiros que vencem o Embate e se tornam dignos da força do tigre; que se tornam dignos do nome Jaê. Seu pai a ouviu de mim quando era jovem, e antes dele seu avô a ouviu de meu pai. Ouça-a com atenção, pois ela guarda um mistério de Jaguar, e não a conte para ninguém mais.

_ Jaí-Kaguá te escuta.

_ Veja, a lua nasce – disse o velho, apontando para o horizonte – Veja a lua.

O jovem se voltou para o oriente. Um disco iluminado surgia no horizonte por cima das árvores infinitas da floresta. Era belo, uma jóia no céu noturno, redonda, cheia, plena. O nascimento da lua era sempre maravilhoso aos olhos de Jaí-Kaguá, mas hoje era especial: ao invés da típica cor laranja, a luz trazia um singular tom de azul. Hoje a lua era Syó, a lua azul. Jaí-Eá começou:

_ Syó nasce. Escuta: 

O Grande Jaguar e os quatro Grandes Tigres criaram o mundo e toda a vida, há primaveras sem conta. À Jaguar coube a criação do céu e tudo o que há nele. A lua é o olho esquerdo de Jaguar, que vigia o sono dos seres. O sol é o olho direito de Jaguar, que tudo observa durante o dia.

O espírito do rio Y-Yê tinha uma filha, Y-Apô; era formosa e bela. Y-Yê, para proteger a filha, a proibiu de deixar o castelo onde viviam, no fundo da lagoa próxima à aldeia. E assim foi.

Mas um dia a bela quis ver o sol. Sabendo que o pai não deixaria, Y-Apô fugiu. Quando saiu da lagoa, todos os animais vieram contemplá-la, era linda a filha de Y-Yê. A chamaram Cabelos Bonitos, porque seus cabelos escorriam sobre seus ombros como a água limpa escorria sobre as pedras, e empoçavam ao redor de seus pés quando ela se sentava. Todos quiseram vê-la, e todos gostavam dela. Até o Sol.

O Sol, que é o olho de Jaguar, viu a bela Y-Apô, e se apaixonou. Desceu dos céus para ficar com ela, e ela se assustou. Jaguar é o Grande entre os Grandes Tigres, criou o céu, e sua forma assustou Y-Apô. Então, Jaguar mudou-se em forte guerreiro homem, o mais belo e mais forte de todas as tribos de homens. Mas Y-Apô nunca vira um homem, e continuou a ter medo. Então Jaguar colheu uma pedra-de-luz das altas montanhas do Oeste, rara entre as jóias. Deu-a de presente à Y-Apô, ela gostou. Passaram a se ver, tornaram-se amantes, e foram felizes. O pai de Y-Apô sentiu-se honrado, e deixou que a filha saísse de casa.

Um dia, Y-Apô passeava na floresta. Um pequeno pássaro de olhos vermelhos pousou numa árvore perto, e curioso como todos os pássaros, perguntou:

_ É você a bela preferida de Jaguar?

_ Sim, sou Y-Apô – sorriu ela.

_ E é verdade que Jaguar lhe dá muitos presentes?

_ Sim, é verdade – respondeu contente.

_ Mas qual a vantagem de ser a preferida do Grande Jaguar, se os pássaros podem nadar no céu e você não?

Y-Apô não conseguiu responder, e o pequeno pássaro foi embora. Naquele dia, Jaguar foi ter com ela, e ela repetiu a pergunta do pássaro:

_ Meu amor, qual a vantagem de ser a preferida do Grande Jaguar, se os pássaros podem nadar no céu e Y-Apô não?

Na mesma hora, Jaguar pegou as pétalas do hibisco e com elas fez um par de asas, mais belas que as das borboletas, e deu-as para Y-Apô. A filha de Y-Yê nunca foi tão contente.

Outro dia, Y-Apô colhia frutas silvestres, quando um arbustos de folhas rubras lhe perguntou:

_ És tu a preferida do Grande Jaguar?

_ Sim, sou Y-Apô, pequeno arbusto – respondeu-lhe Y-Apô.

_ E é verdade que Jaguar te dá muitos presentes, e foi ele quem te deu estas asas para que pudestes nadar no céu?

_ Sim, isto tudo é verdade – sorriu ela

_ Mas qual a vantagem de ser a preferida do Grande Jaguar, e poder nadar no céu, se para ter a doçura dos frutos precisas colhê-los junto ao chão?

Y-Apô não conseguiu responder, e deixou o pequeno arbusto para trás. À tarde, Jaguar foi ter com ela, e ela repetiu a pergunta:

_ Amado meu, qual a vantagem de ser a preferida do Grande Jaguar, e poder nadar no céu, se para ter a doçura dos frutos Y-Apô precisa colhê-los junto ao chão?

Jaguar sorriu para a bela Y-Apô, pegou um favo de mel de uma colméia e lhe deu. Os dedos de Y-Apô ficaram melados de mel, e desde então nunca mais deixaram de sê-lo. Assim, se Y-Apô quisesse doce, bastava lamber os dedos. E a filha de Y-Yê nunca foi tão contente.

Outro dia, Y-Apô nadava no céu junto aos pássaros, e uma nuvem vermelha se aproximou dela:

_ Ó formosa, és tu aquela que chamam a preferida de Jaguar?

_ Sim, esta é Y-Apô – sorriu ela.

_ E é verdade que Jaguar te dá muitos presentes, e foi ele quem te deu estas asas para que pudestes nadar no céu, e foi ele quem fez teus dedos tão doces quanto o mel?

_ Sim, é verdade

_ Mas qual a vantagem de ser a preferida do Grande Jaguar, e poder nadar no céu, e ter a doçura do mel nos dedos, se não podes ter o conhecimento dos Céus e da grandeza dos Deuses?

Y-Apô não conseguiu responder, e se despediu da nuvem vermelha. À noite, Jaguar foi ter com ela, e ela repetiu a pergunta:

_ Meu amor, qual a vantagem de ser a preferida do Grande Jaguar, e poder nadar no céu, e ter a doçura do mel nos dedos, se Y-Apô não pode ter o conhecimento dos Céus e da grandeza dos Deuses?

Dessa vez, Jaguar não sorriu. Olhou para a bela, e disse:

_ Mas para que desejas isto, minha amada, se já tens o amor de Jaguar e tudo o resto o que ele pode dar?

Y-Apô não respondeu.

_ O conhecimento dos Céus e da grandeza dos Deuses não devem ser dados aos seres, não enquanto fizerem parte desta vida – replicou Jaguar – Isto é a lei desde o início do mundo e nem Jaguar pode quebrá-la.

Y-Apô não respondeu. Y-Apô o deixou sem dizer uma palavra. Estava magoada. Pegou a pedra-de-luz, o primeiro presente que recebera de Jaguar, e devolveu-a. Jaguar chorou, e aquela noite foi uma noite triste e sem lua para todo o mundo.

Na noite seguinte, Jaguar foi ter com Y-Apô. Estava triste como um rio sem peixes, e trazia a bela pedra-de-luz de volta:

_ Desejas realmente que Jaguar te dê o conhecimento dos Céus e da grandeza dos Deuses?

_ Sim, Y-Apô deseja – respondeu ela.

_ Triste é o coração de Jaguar por isso, mas Jaguar vai dar esse presente.

Devolveu-lhe a pedra-de-luz, e Y-Apô nunca foi tão contente. Jaguar mudou-se em tigre novamente, como era e sempre fora, e pediu para que ela subisse em suas costas. Ela se agarrou em seu pêlo, e ele a levou para cima, para o alto, sobre toda a floresta. Y-Apô subia, e subia, rápida como uma flecha, e sua alma aumentava; tornava-se sábia. Via rios, árvores e seres, via tudo com a agudez dos olhos do falcão. Jaguar a levou mais para cima, e ela pôde ver o limite da Grande Floresta, o limite que ninguém nunca viu. Jaguar a levou mais para cima, e ela pôde entender o porquê de muitas e muitas coisas. Jaguar a levou mais para cima, e sua alma já brilhava como um segundo sol. Já estavam acima deste céu, muito acima de tudo, quando Y-Apô entendeu. Ela não podia ir além.

Tentou desesperadamente avisar ao amado que não queria prosseguir, mas o vento era tanto e a velocidade tamanha, que era impossível ouvir, ou mesmo parar. Y-Apô se segurou com força no corpo amarelo de seu amado, enquanto sua alma crescia e brilhava, enquanto deixavam tudo lá embaixo. Ela entendia tantas coisas, e quanto mais entendia, mais sua cabeça doía com o peso do conhecimento. Y-Apô sentiu-se sufocar com o poder da Revelação, sentiu-se sufocar diante do peso do Mundo. Jaguar sentiu a angústia da amada, mas já era tarde. Uma lágrima brotou de seu olho esquerdo. Aquela noite, houve uma grande explosão de luz. Y-Apô já não era mais.

Vendo a grande luz, a nuvem vermelha se mudou em Bóiaçu, a Grande Serpente de Olhos de Fogo. Bóiaçu é o espírito da inveja, e desde o começo havia invejado o amor de Y-Apô. Bóiaçu se mudara em pássaro, depois em arbusto e por último naquela nuvem, para induzir a bela à inveja das coisas. Quando viu a grande luz, Bóiaçu sorriu insatisfeita – porque a inveja nunca pode se satisfazer – e voltou para seu pântano.

Muito magoado ficou o espírito do outrora alegre rio Y-Yê; ele perdera sua bela e amada filha. A tristeza tornou suas águas tristes e escuras, e até hoje ele é assim. Agora o chamamos Y-Yú, o Rio Escuro.

Triste como o inverno, Jaguar pegou a pedra-de-luz que caíra da mão de Y-Apô. Decidido, reuniu a luz em que se transformou a amada e que se espalhava pelo céu, e a moldou em várias pedras-de-luz. Pegou-as e as espalhou no céu escuro da noite, que então era negro como uma caverna; da luz de Y-Apô, Jaguar formou as estrelas. Da primeira pedra-de-luz, Jaguar fez a estrela que brilha mais que todas as outras: que é a última a brilhar antes do dia chegar e a primeira que brilha quando a noite vem. Por isso nós a chamamos de Poy, que significa “Primeiro Presente”. As pedras-de-luz das montanhas do Oeste ainda podem ser encontradas, e têm poderes místicos bastante procurados por nossas feiticeiras.

O amor de Jaguar e Y-Apô durou duas primaveras, antes que a inveja destruísse tudo. Desde então, de duas em duas primaveras, Jaguar verte a mesma lágrima do olho esquerdo, a mesma lágrima que verteu na última vez que viu Y-Apô. Essa lágrima é a Lua Azul, essa lágrima é a Syó.

Jaí-Eá calou-se. Syó já era alta no céu. Esperou um pouco, e continuou:

_ Escuta Jaí-Kaguá: Jaguar é grande guerreiro e seu valor é a bravura. Mas o bravo também deve saber chorar. Jaguar amou Y-Apô e até hoje carrega a lembrança dela, no brilho azul de Syó. Hoje te tornarás merecedor da força do tigre, e lembra-te o que a inveja da Grande Serpente destruiu aquele dia. A inveja envenena o valor dos homens.

Jaí-Eá se levantou. Pegou algumas cinzas da panela de pedra e estendeu a mão sobre a cabeça do jovem, no exato momento em que Syó passava no zênite.

_ Estas são as cinzas desta história. Carrega-a sempre contigo – e soltou as cinzas na cabeça de Jaí-Kaguá – De hoje em diante, não serás mais Jaí, do clã do chefe, mas serás Jaê, do clã dos homens-tigre. Levanta-te, Jaê-Kaguá.

O jovem levantou. Jaí-Eá se aproximou e amarrou a segunda presa de tigre no cordão de Jaê-Kaguá. Abraçaram-se. Jaê-Kaguá chorava.

_ Vamos, filho, estás batizado.

Jaê-Kaguá ajudou o velho guardião das tradições a recolher a panela de pedra e as esteiras. Espalharam e apagaram as cinzas. Preparavam-se para partir, quando Jaê-Kaguá perguntou:

_ Jaí-Eá também é um homem-tigre. Porque não traz o nome de Jaê?

_ Porque a tradição em mim é maior que a força. Meu lugar não é na guerra.

Então, sob a luz azulada de Syó, os dois homens mudaram-se em tigres, e lentamente, seguiram o caminho de volta até a aldeia.

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