sábado, 17 de outubro de 2009

[Conto] Cacos de Porcelana


(do universo de Kate Whitehill)

O dia estava cinzento e frio. Ela se abraçava e apertava o casaco, enquanto se dirigia para a praça. É o fim do outono, e a partir de então o tempo só tende a piorar. Suspirou. Passaria outro inverno sozinha.

Atravessou a rua movimentada e alcançou a borda da grande praça onde costumava ir todos os dias. Caminhava a passos curtos, não por causa da idade, porque embora fosse velha, seu vigor sempre fora estranhamente inalterável. Seus passos são curtos porque ela está triste. Emily está sempre triste.

Atravessou a praça, quase vazia por causa do frio, e se sentou num banco solitário perto do lago. Meteu a mão dentro do casaco e tirou um pequeno saco com migalhas de pão, que passou a espalhar na superfície da água. Logo peixes apareceram. Fazia tempo... Fazia muito tempo que ela se levantava toda manhã para alimentar os peixes da praça. Fazia isso até o meio-dia, quando então ia para casa esquentar um pouco de comida, e assistia televisão ou lia um livro até o anoitecer. À noite, quando ia dormir, na escuridão de sua quitinete vazia, chorava. Chorava até cair no sono, para acordar no dia seguinte e repetir sua rotina sem graça. Assim têm sido sua vida há quase quinze anos. Sem sonhos, sem alegria. Apenas um buraco vazio, um sentimento inexplicável de que faltava algo. Mas o quê?, já se perguntou numerosas vezes. A resposta estava ali, encarando-a, ela sabia, só não sabia onde.

Mas não foi sempre assim. Antes, ela se lembra, antes ao menos havia George. George foi seu marido, homem decidido, entusiasmado, que queria fazer tudo ao mesmo tempo, e que de alguma maneira conseguia. Gostava de George, de estar por perto, e naqueles dias a sensação de vazio era menor. Menor, veja bem, porque Emily sempre se sentiu deslocada. Ele trabalhava muito, tinha um emprego bom, e adorava conversar, discutir seus planos e sonhos. Ela gostava de ouvir, às vezes até dividia uma opinião ou outra, e viviam contentes. Era uma vida feliz, hoje costuma se dizer, embora saiba que mesmo naquela época se sentia insatisfeita. Não com o marido, mas com algo. Com o quê?

O vento soprou mais forte, e se abraçou de novo. Os peixes brincavam na superfície da água, esperando mais pão. Olhou absorta para as pequenas ondas.

E então George morreu. Foi num acidente de carro, há quinze anos, e desde então a empresa dele paga uma pequena pensão para a viúva. Por isso ela, que nunca fez faculdade nem trabalhou, pôde continuar vivendo na mesma quitinete e manter a vida, enquanto a solidão lhe apresentava a praça e os peixes do lago. Agora tinha mais tempo pra refletir, pra pensar na insatisfação que sempre a sufocou.

A sua vida foi um pouco confusa. Não se lembra de nada de sua infância, e apenas um pouco de sua adolescência. Não tem memórias de sua casa nem de sua família, sua família sempre foi George. Eles se conheceram na juventude, casaram-se cedo. Os anos de casamento e os anos de viúva são tudo o que lhe resta para lembrar. Isso sempre a incomodou, e já chegou a achar que o vazio que sentia eram as memórias perdidas. O estranho é que sabia que tinha mais, algo mais a ser preenchido, do que simples lembranças de infância. George gostava de ouvi-la falar sobre isso, mas pouco podia ajudar. Nessas conversas, ela costumava se comparar a um vaso, o vaso de porcelana que eles mantinham na sala. Não era bonito nem feio, mas podia dizer que ele estava ali, que existia e fazia diferença na quitinete. Era um vaso incomum, bem trabalhado e cheio de desenhos e símbolos estranhos. George achava aquela porcelana bem esquisita, mas nunca disse isso à mulher, nem mandou analisarem. Afinal, Emily gostava do vaso, de olhá-lo, embora não soubesse bem o porquê. Gostava muito daquele vaso, dizia, mas no final das contas, era apenas um vaso vazio, vazio como ela. George sorria no final dessas conversas, e a beijava carinhosamente. Ele a tratava muito bem, e a ajudou a suportar o peso terrível desses anos todos.

De repente, uma confusão vindo dos limites da praça. Mas ali tudo era sempre tão tranqüilo... Emily olhou na direção do movimento, e viu pessoas correndo, algumas gritando de medo. Então se levantou assustada, e o saco espalhou migalhas no chão. Havia sentido algo...  

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Do outro lado da praça, pânico. Uma coisa cinzenta e verde, do tamanho de um jogador de basquete, andava devagar. Tinha duas pernas, uma cauda esguia, um tronco largo e ainda assim magro, e o que pareciam ser quatro braços. A cabeça era longa, longa como um ovo, e não tinha rosto. Ninguém sabia de onde tinha vindo nem como tinha aparecido ali, aquela coisa simplesmente surgiu de um momento para o outro, e as pessoas correram apavoradas. Andava devagar, mas seus passos eram longos, e sempre que alcançava alguém, estendia duas mãos. A pessoa parava com olhar vidrado, incapaz de se mover e fora de si, e então desmaiava com um grito. A coisa cinzenta perseguia, fez isso três ou quatro vezes, e então encontrou Emily. As pessoas passaram correndo durante todo o episódio, que não deve ter durado mais que alguns minutos, mas ela não se moveu um passo. Alguém de longe gritava para que fugisse, porque aquela coisa estava matando gente, mas Emily não ouvia. Eles pensaram que estava paralisada de medo, e pararam de se preocupar com ela para cuidarem de si mesmos. Mas não era medo o que Emily sentia. Era... saudade.

A coisa cinzenta parou diante dela, mas não estendeu mais as mãos. Ficou encarando-a com seu rosto sem face, por alguns segundos, e não há palavras terrestres para descrever o que ele sentiu. Alegria, misturada ao êxito, à saudade, à tristeza, à satisfação, ao alívio. Um peso do tamanho do mundo foi tirado de suas costas verdes e ossudas, e ele teria sorrido se tivesse boca, e teria chorado se tivesse olhos. Ajoelhou-se e levantou as quatro mãos ao céu, em júbilo, para agradecer aos deuses, ou a qualquer coisa em que acreditasse, por tê-la finalmente encontrado. Há muito tempo que não via a irmã perdida, a irmã adorada, separados como foram durante a fuga de seu mundo. As pessoas que gritavam de medo e corriam podiam não saber, mas ele já não era jovem, e embora sua espécie tivesse um vigor abençoado que não se desgastava com o tempo, ele estava cansado. Quando os teocratas de seu mundo deram o golpe, todos que não seguiam a nova crença foram presos ou exterminados. Um êxodo em massa ocorreu, e muitos e muitos dos seus buscaram abrigo em outros mundos. Ele e sua irmã seguiram com os refugiados para longe, e após uma viagem cansativa, chegaram à Terra. Alguns puderam desembarcar e foram devidamente transmutados, porém, um caça teocrata os alcançou e o restante teve de fugir. Sua irmã foi a última a descer, anos terrestres atrás, levando consigo um vaso de porcelana de seu mundo e a promessa de voltarem a se encontrar. Ele conseguiu fugir do ataque, mas teve que se manter recluso até que fosse finalmente seguro viajar. Desde então, ele têm visitado a Terra para encontrá-la.

Porém, a urgência da transmutação pode ter sido traumática. Ele já ouviu casos assim, de perda completa da memória dentre outras conseqüências, quando a transmutação não era feita direito. Por isso foi tão difícil encontrá-la, por isso ele perdeu tanto e tanto tempo escaneando as mentes de terráqueos, em sua busca. Essa é a primeira vez que ele vem à Terra sem transmutação, mas porque ele sabia que seria a última. Os teocratas foram finalmente derrotados, e ele sabia quase exatamente a localização da irmã. Eles poderiam voltar pra casa outra vez. Outra vez irmãos.

Tudo isso lhe passou pela mente em menos de um segundo, enquanto a velhinha o encarava admirada.  

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Pela primeira vez em sua triste existência, Emily se sentiu contente, e sua alegria veio abraçada com uma grande saudade do passado, do passado de que nunca se lembrou, que sempre foi um mistério, e que agora parecia um segredo simples. Tudo o que tinha que fazer era perguntar. Tudo que ele tinha que fazer era transmutá-la de volta.

Um raio de fogo e um grito terrível. Emily foi jogada para trás com o susto, enquanto ele queimava em agonia. Levantou-se assustada, tentando se aproximar do que agora era uma grande fogueira, mas o calor a impedia. Ele queimou e queimou, e durante instantes ela pode ouvir alto e claro um grito de dor que não vinha de nenhum lugar, mas ecoava dentro de sua mente. Desesperada, lágrimas caíam copiosamente, enquanto ela se arrastava até o corpo em chamas. Em pouco tempo o fogo o transformou em cinzas. Do centro da praça, uma mulher de sobretudo cinzento apontava uma pistola estranha. Estava do lado de um homem alto, quase da mesma idade, e olhavam a cena como se nada estivesse acontecendo.

_ Pronto, missão cumprida – sibilou Kate Whitehill.

_ É, esse foi fácil – comentou Kenneth – Faz tempo que um desses alienígenas não aparece em Londres sem algum disfarce. O que será que ele queria?

_ E eu me importo? A aberração está exterminada, o mundo está mais seguro. Não é esse o nosso trabalho, Ken? – ela guarda a arma num bolso interno e acende um cigarro.

_ É, acho que você tem razão... O quê aquela velhinha ‘tá fazendo?

Kenneth McSmith aponta para Emily, que agora chorava como um bebê, segurando as cinzas com força. Não, não havia se lembrado, ainda não sabia quem realmente era, mas chorava porque nunca saberia, porque teria que viver o resto de sua vida miserável sem saber. De algum modo, entendeu que a resposta estivera ali, na sua frente, olhando para ela com seu rosto sem olhos. De algum modo não sentiu medo, mas alegria, uma alegria que buscou a vida inteira. E agora ele se foi, e ela sentiu a dor. Não somente a dor de algo morrendo, mas também a dor de um sonho agonizando, de uma promessa antiga que nunca mais poderia ser cumprida. E tudo estava tão perto... A resposta estava tão próxima...

Kate deu três tiros. Emily caiu para frente, alvejada na cabeça. Lágrima, sangue e cinzas. Do outro lado da rua, numa quitinete escura e solitária, um vaso de porcelana escorrega da mesa onde sempre estivera, sem ter sido empurrado, e se parte em mil pedaços.

_ Kate, O QUÊ QUE VOCÊ FEZ?

Ken correu desesperado para o corpo da velhinha que havia pouco chorava. Analisou o corpo sem vida, e em seguida voltou-se exasperado para Kate, que vinha a passos lentos.

_ Por que fez isso? – perguntou, horrorizado.

_ Quer ficar calmo, Ken? O analisador portátil no meu corpo é bem mais preciso do que os de agentes comuns da organização – disse ela, cutucando o corpo da velha para se certificar de que estava morta – detectei DNA alienígena misturado com DNA humano, um trabalho muito bem feito, quase me passou despercebido – ela dá uma tragada – Peça para os agentes levarem-na, deve ser de alguma utilidade.

_ Então, ela era uma alienígena também? – disse Ken, ainda perturbado.

_ Você ‘tá dormindo? Eu disse que detectei DNA extraterreno nessa velha. Você acha que eu atiraria em seres humanos?

_ É, bem, desculpa Kate, é que me pegou de surpresa – disse, se levantando e ajeitando o terno. Queria passar tranqüilidade, mas a verdade é que estava abalado.

_ Enfim, diga para levarem as pessoas que desmaiaram para o hospital, e anuncie no jornal que um artista fez uma fantasia estranha e acabou assustando as pessoas. Isso deve colar. Ainda bem que ninguém estava aqui quando atacamos, ia dar uma dor de cabeça... Bem, tenho que estudar uns arquivos pro próximo alvo, então vou indo. Ajude os agentes a encobrirem bem o caso, sei que você é um dos melhores pra fazer isso. Até, Ken.

Afastou-se apressada até um Bentley cinzento estacionado próximo, enquanto Ken ruborizava ligeiramente com o elogio. Logo, mais agentes chegaram, e começaram a pôr o trabalho em prática.

Aconteceu alguma coisa ruim, muito ruim, Kenneth pensa, porque não conseguia tirar o gosto amargo da boca. Ele cospe pra esquecer o caso, enquanto a alma do exilado alienígena o observa, gritando, mutilada, presa eternamente no limbo do desespero, impedido para sempre de encontrar sua amada irmã e de voltar para casa. 

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Nota do autor: Kate Whitehill e Kenneth McSmith são personagens emprestados pela autora e amiga Rita Maria Félix da Silva - http://riteando.wordpress.com/

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