sábado, 17 de outubro de 2009

[Conto] Jogo de Facas

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(do universo de Kate Whitehill)

Ela atende ao telefone.

_ Alô, Ken? Sim, diga. Não, eu não estava dormindo, estou na cozinha. É, é a merda de minha insônia, mas você não ligou pra falar disso.

E Kenneth lhe contou sobre o trabalho que ela tinha que fazer. Kate Whitehill não gostava de ser importunada à noite, mesmo quando estava com insônia, mas se o motivo fosse o trabalho, não tem problema. Nenhum problema, ela adora o seu trabalho.

Ela anota o endereço e desliga o telefone rapidamente. Corre para o quarto para trocar de roupa. Tira sua camisola, ainda nova pelas noites que não passa em casa, veste seu sobretudo cinzento e calça as botas, enquanto escolhe as armas que vai levar. Em menos de dez minutos, já estava abrindo a porta da garagem. Kate sabia ser eficiente. Ela dá a partida no seu Bentley prateado e ganha as ruas.

Três horas da manhã e Londres ainda mantém algum movimento, pessoas indo e voltando das boates. E é para uma boate que Kate está indo, mas não para dançar.

Ela olha o endereço, pega uma rua lateral e escura. Nada de Soho, o bairro aonde ela se dirige é muito mais periférico. O Bentley sacoleja um pouco com uma curva mais fechada; Kate não diminui a velocidade. Sua noite estava um lixo até Ken ligar, agora ela estava ansiosa pra ver como poderia ajudar o mundo esta noite. Ela adentra algumas ruelas sujas e pequenas e freia, sem nem precisar conferir o endereço: alguns carros da organização já estavam ali, todos escuros, em frente a um prédio roxo e feio. Ela sai do carro e acende um cigarro.

_ Você chegou rápido – disse-lhe Kenneth, saindo de um dos carros pretos.

_ Você me conhece, Ken. Eficiência.

_ É, sei. Venha, já isolamos o lugar. Aconteceu num dos quartos do último andar, o dono tentou esconder o ocorrido, mas não se esconde esse tipo de coisa da ONU, não é?

_ Claro. Temos rastreadores pela Europa inteira.

_ Venha, a equipe está lá dentro. A menina estava inconsciente, mas a gritaria do dono a acordou. Ela estava desmaiada ao lado de cinco corpos dilacerados – ele passa fotos para Kate, enquanto sobem as escadas da casa de strip – todos turistas americanos. A garota é brasileira, aqui estão as informações que conseguimos dela.

Kate pega o envelope, alaranjado pela parca luz ambiente. O cheiro de sexo e mofo invade suas narinas à medida que adentram mais aquele lugar imundo. Ela dá mais uma tragada e retira os papéis, enquanto Ken resumia os dados.

A menina se chamava Candy, ou pelo menos era conhecida assim naquela espelunca. Ela era dançarina de uma banda de forrór no Brasil, ou algo assim, e veio pra Londres há um ano com uma promessa de emprego. O que conseguiu foi a profissão de stripper, um cafetão que a entupiu de drogas e um segundo emprego como prostituta. Até então, nenhuma ocorrência antinatural. Acontece que dessa vez, exageraram. O dono do bar arranjou um programa para ela com cinco americanos, aficcionados por facas. A menina deve ter se assustado, entrado em pânico, e isso liberou seu primeiro fluxo de poder. Telecinésia. A primeira vez geralmente é traumática. Os corpos foram dilacerados pelas facas que eles mesmos trouxeram, e em meio ao sangue, a garota desmaiou. Uma prostituta do quarto ao lado ouviu os gritos e chamou o segurança. Conseguiram esconder o acontecido dos demais fregueses, o que já é trabalho a menos – imagine controlar uma dezena de pessoas em pânico! – e já iam dar sumiço nos corpos quando os agentes da ONU chegaram. Fizeram a ligação urgente para a equipe de Kate. Ela devia cuidar disso.

Ken terminou o relato quando eles chegaram no último andar do prédio. O chão rangia sob as botas cinzentas de Kate, o carpete mal colado do corredor fedia. Manchas suspeitas povoavam o chão e o papel de parede de mau gosto. Ela olha tudo aquilo com repugnância. Dois agentes da ONU guardavam o quarto onde estava a menina, mas o barulho e gemidos de sexo vindo dos outros quartos indicavam que não haviam evacuado o andar. Tanto melhor; se Kate resolvesse o problema sem chamar a atenção, mais fácil seria encobrir tudo. Ela e Ken atravessam o corredor até a entrada do quarto.

_ E onde está ela? – perguntou Kate.

_ Chorando no fundo do cômodo. Parece meio fora de si, e ninguém mais se atreveu a se aproximar dela.

_ OK. Eu vou entrar.

_ Kate, espera – Ken segurou-a pelo ombro.

_ Sim?

_ Bem, só toma cuidado. Ela pode entrar em pânico e ter outro fluxo.

_ Kenneth, você acha que sou uma iniciante? Já lidei com situações piores.

_ É, eu sei, só toma cuidado – e Kate entrou.

O quarto fedia mais que o resto do prédio, cheiro de sangue se misturava ao fedor. Ele não era muito diferente, o mesmo carpete encardido no chão, o mesmo papel de parede rasgado. Cortinas limpas esvoaçavam na janela aberta, contrastando com o ambiente sujo. A cama estava tombada de lado, e uma garota seminua e suja de sangue chorava baixinho encolhida no canto do quarto. Ela não pareceu notar Kate, mas não parava de olhar para o centro do quarto: um amontoado de corpos e vísceras, com marcas de corte visíveis na pele e no chão de madeira. E, é claro, sangue, muito sangue.

Kate põe a mão sobre o cabo de seu revólver e se aproxima devagar. Sua equipe teve o bom-senso de retirar as facas do local, e não havia nada de muito perigoso que a telecinese da garota pudesse usar “acidentalmente”. Ela chorava, e isso fez Kate mudar de idéia. Afastou a mão da arma e se aproximou mansamente.

_ Q-quem é você? – perguntou a garota, e seu inglês era péssimo. Seu estado não melhorava muito sua pronúncia.

­_ Meu amor, você está bem? Seu nome é Candy, não é? Posso te chamar de Candy?

A garota engoliu um pouco o choro e parecia voltar a si.

_ Meu nome verdadeiro é Maria Aparecida. Me tira daqui, moça, por favor, por favor, me leva pra longe daqui!

_ Calma, calma, Maria... – Kate se aproximou, maternal – Está tudo bem, tudo vai ficar bem.

_ Eu não sei o que aconteceu, não sei, eu estava ali, e de repente tudo apagou, eu não sei, e então eu acordei, e tinha sangue, e mais sangue, e pessoas gritando...

Kate lhe sorriu de forma reconfortante e deu-lhe um forte abraço, e a menina começou a chorar, mais e mais.

_ Eu não fiz nada, juro que não fiz nada...

_ Eu sei, eu sei, foi um acidente meu amor. Acidentes acontecem. Estamos aqui para ajudá-la. Chamaram-me especialmente para ajudá-la.

_ Eu estou cansada, moça, cansada dessa vida! Não agüento mais, me tratam como lixo, todo santo dia; eu só quero ir pra casa, e ver minha mãe, minha querida mãe, tão longe, tão longe!

_ Você deseja voltar pro Brasil?

_ Sim, desejo sim! Nunca mais quero entrar num lugar assim, nunca mais! Moça, eu só queria ser uma grande dançarina! Era meu sonho! Não queria machucar ninguém, acredita em mim, mas de repente as facas, as facas deles voaram e então... então – e desabou no choro.

_ Calma, Maria, calma, nós vamos te ajudar. Confie em nós, vamos te mandar de volta pra casa, pra sua mãe, e você não precisa mais voltar pra esse lugar. É o nosso trabalho, sabe? Ajudar pessoas com problemas como o seu. Não, não chore mais, você precisa se acalmar. Não se preocupe com o que aconteceu, tudo será arranjado. Não, não fique triste, por favor. Está melhor? Ouça, você está em estado de choque e em pânico, desse jeito será impossível ajudá-la. Vou lhe dar um calmante para você dormir um pouco, tá OK? Você quer tomar um calmante?

_ Obrigada, obrigada moça, muito obrigada! – ela apertava forte os ombros de Kate, enquanto ela alisava seu cabelo devagar – Sim, eu tomo qualquer coisa pra isso tudo acabar, quero sair daqui, me ajudem.

_ Não se preocupe, minha menina. Ouça, vamos te dar uma pequena injeção, nem vai doer, e então você dormirá profundamente, OK? Quando você acordar, vai estar finalmente longe daqui.

_ Sim, sim, obrigada!

Kate fez um sinal para os homens, que vigiavam na porta entreaberta, e um deles trouxe uma seringa. Kate afastou carinhosamente a menina, levantou a manga de sua blusa e aplicou-lhe a injeção. Maria começou a parar de chorar, e repetia sempre um “obrigada, obrigada”, até que sua voz diminuiu e ela caiu no que parecia um sono profundo no colo de Kate.

Kate deitou a menina no chão e esperou uns minutos. Então, checou o pulso da moça pulso para ver se a injeção havia realmente funcionado. Sorriu com satisfação. A garota estava morta.

_ Enfim, terminou. – disse ela, enquanto homens de ternos pretos finalmente entravam no quarto – Ainda bem, tipos como o dela têm o metabolismo muito alto, nem sempre é fácil matá-los assim. Bem, missão cumprida, sigam o procedimento padrão. Retirem o cérebro dela e enviem para Paris, para Alphonse e François. Aqueles dois maníacos vão adorar, têm uma tara por cérebros de telecinéticos. Lembrem de incinerar o resto do corpo, e cubram a morte dos cinco turistas com uma história boa ou algo que o valha. E, por favor, não esqueçam dessa vez de subornar bem o dono dessa espelunca e quem mais souber do caso, ou então só “cuidem” deles, eu realmente não me importo, contanto que isso não vaze.

_ Sim, senhora – responderam.

Kate saiu para fumar no corredor. Parecia nervosa. Kenneth, que havia acompanhado o evento dali, se aproxima dela.

_ Ei, Kate, ce tá legal?

_ Que é, Ken?

_ Bem, eu só vim saber se você tá legal, depois de fazer o que teve que fazer lá dentro – ela faz cara de descaso, e isso o surpreendeu um pouco – Kate, você não se importou com o que fez?

_ Olha, Ken, se eu não tivesse agido daquela forma, a aberração podia ainda estar viva e Deus sabe o que poderia ter acontecido. Da forma como eu agi, pude me aproximar dela sem nenhum risco e a eliminei sem colocar qualquer agente em perigo. Não se esqueça, Ken, esse é nosso trabalho, a gente elimina aberrações como ela todo mês, em qualquer lugar do planeta. A gente é que mantém essa porcaria de mundo seguro.

_ Mas você não teve pena da menina? Ela podia ter sido sua filha...

Então Kate parou de fumar e olhou para ele. Poucas vezes Kenneth a havia visto com aquele olhar, e nunca era seguro estar por perto. Seus olhos estavam injetados, vermelhos de raiva; não poderia haver mais ódio no mundo do que o ódio que havia naqueles olhos. Sem perceber, ele recuou dois passos.

_ Kenneth, você perdeu o juízo? Qual o seu problema? Qual a merda do seu problema?! Como se atreve a comparar minha filha a uma aberração daquelas?! Foi por causa de abominações como esta que Megan está morta. Morta! Se não fossem estas aberrações eu ainda teria minha filha, e minha família! Ouça Kenneth, nós estamos numa guerra, minha, sua, da ONU, e de toda a equipe para limpar o mundo desses monstros. E eu vou fazer de tudo para que esta guerra seja ganha pelos humanos, qualquer coisa! Se você não tem estômago pra isso, se demita de uma vez – rosnou ela, e acrescentou, sorrindo – E lembre-se que é norma da organização não deixar agentes aposentados vivos, afinal não é bom pro negócio ex-operativos de consciência frouxa falando demais. Então, nunca, jamais ouse falar na minha filha de novo, está me entendendo?

Ela joga o cigarro no chão e sai pelo corredor, pisando forte, deixando pra trás um Kenneth bastante perturbado. Seus passos estalam a madeira velha do assoalho do corredor, e antes de descer pela escada, ela ainda diz:

_ E não tente bancar a minha consciência, porque a última pessoa que tentou está no fundo do mar com uma bala no olho direito.

E foi embora. Kenneth suspirou e apagou com o pé o cigarro que ela jogara no corredor, enquanto os agentes incineravam o que restou de Maria Aparecida.

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Nota do autor: Kate Whitehill e Kenneth McSmith são personagens emprestados pela autora e amiga Rita Maria Félix da Silva - http://riteando.wordpress.com/

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