sexta-feira, 16 de outubro de 2009

[Conto] Metal, Céu e Mar

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Metal, Céu e Mar
(do universo de Aera, o mundo dos Deuses-Ventos)
(histórias de Āsh-Sharq, os desertos do Leste)

Não sou escravo de ninguém. Fui construído por um feiticeiro solitário, que sucumbiu sozinho em seu próprio castelo, e desde então conheço a liberdade. Fiz o que fiz e segui até aqui por minha própria vontade, por isso não trago qualquer arrependimento, nem deixo nada para trás. Meus amigos estão mortos, e logo também estarei.

Sinto o vento forte em meu rosto quente, na mão direita a espada quebrada, na mão esquerda o tesouro de meu capitão e amigo. O sonho que buscamos por tantos anos, o sonho que nos uniu como companheiros! Estou caindo, e levarei este tesouro comigo. Atravesso veloz as nuvens da noite, em direção ao grande Mar, aos seus profundos abismos. Mesmo que eu resista à queda, nem meu corpo de ferro suportaria a pressão das profundezas abissais. Serei destruído, e o tesouro se perderá para sempre.

Eu me juntei à tripulação do Castelo do Céu há cinco anos. Pelos Ventos, como era solitário antes dele! Fiz amigos verdadeiros ali, amigos que poucas pessoas podem se gabar de terem tido. Meus amigos... Viajamos muito e juntos conhecemos muitos lugares, sobrevoamos as florestas do País do Sul e visitamos quase todas as ilhas voadoras. O Castelo do Céu era um aeronavio explorador, buscávamos um sonho, e esquadrinhamos os céus em sua procura. Foi Im Onarhais quem nos uniu nessa viagem, quem deu um propósito para nossas vidas. Foi um bom capitão, o melhor pra quem trabalhei como aeronauta. Todos os tripulantes do Castelo lhe eram gratos. Muitos de nós sequer tinham mais do que a roupa do corpo, nem família; alguns até eram criminosos. Ele acolheu a todos e nos deu um novo rumo. Fez-nos abraçar seu sonho, algo que mudaria nossas vidas para sempre: a busca pela Trimiftah! Eu nunca antes tivera um propósito, perambulara anos por aeronavios, mas Im Onarhais me deu um sonho. Fiz dessa a minha busca.

Aperto com força a pequena chave de ouro e prata em minha mão. E, lágrimas? Eu não sabia que podia chorar. Cinco décadas de vida e é a primeira vez que choro! As lágrimas escorrem para cima, para onde o Castelo jaz em chamas... Porque as coisas tiveram que ser desse jeito? A própria fé em nosso companheiro destruiu tudo. Nosso próprio companheiro! Quem imaginaria que Ha Kakazar fosse um traidor? E fingiu nossa amizade por tantos anos...

Trimiftah, a chave dos três reis, em minha mão esquerda! Cinco anos em sua busca, cinco anos de luta e determinação, para terminar aqui, caindo para o mar, para a morte. A Trimiftah... Mesmo eu já ouvira falar dela antes de ingressar no Castelo; uma lenda famosa. Dizia que três poderosos reis guardaram todos os seus tesouros em um único salão, separado desse mundo. O único caminho para lá era um portal de pedra, trancado por sua vez por uma chave mágica. A própria chave era um tesouro, forjada em ouro e prata e incrustada de diamantes. A Trimiftah. O portal era conhecido de todos, um atrativo de nobres e peregrinos, mas a localização da chave era um mistério lendário. Cinco anos em sua busca, para Ha Kakazar destruir tudo!

Tento me voltar para cima, e o vento atinge meus olhos. Vejo a lua e as estrelas. E ali, atrás das nuvens escuras, ainda vejo os restos flamejantes do Castelo, o túmulo de meus amigos.

Depois de tantos anos, estávamos exultantes, finalmente a encontramos! Um sonho realizado, a riqueza de três reis! Quase acreditei em Ha Kakazar – porque ainda o chamo de amigo? – Bem, quase acreditei em Kakazar. Não sei porque, mas estranhei quando pediu que todos esperássemos no convés inferior, para um comunicado do capitão. Intuição de golem, talvez. Tive vontade de ver a chave antes do comunicado, mas quando abri o baú de pedra, ela havia sumido! Senti o cheiro da traição, e corri para avisar os outros. Tomei minha espada e entrei no convés.

Mas era tarde demais.

Quando desci a escada, as chamas engolfaram todo o lugar. O grito de meus companheiros e amigos! Ainda ouço o eco de suas dores, acima do zumbido do vento. Kakazar, um feiticeiro vermelho? Escondera muito bem a sua identidade, muito bem! E agora usava um dos encantamentos mais terríveis de sua casta: o sopro do dragão. O fogo destruidor mergulhou o convés em rubro e engoliu nossos corpos. O corpo humano é tão frágil. Com meus olhos de golem pude ver por entre as chamas, vi meus companheiros caindo em estertores de agonia. Vi meu capitão gritar de ódio e desespero, seu chapéu se incinerar e seu corpo murchar como uma mariposa no fogo. Vi os demais morrerem também, um a um. A cena me paralisou, a estupidez e ganância de Kakazar destruíram tudo, tudo; meu sonho se fora com a vida de todos eles. Mas, eu podia avançar. Ergui minha espada de ferro e investi contra o traidor. Ele me viu, entoou um encantamento de guerra e criou lanças de fogo, que atacaram meu corpo por todos os lados, barrando-me o caminho. Meu ferro começou a arder, minha mão fundia-se ao cabo da espada. Usei toda a força que tinha e baixei minha arma sobre o chão. Madeira e ferro se partiram, fragilizadas pelo fogo, e o navio deu um poderoso solavanco. Isso fez meu inimigo cair para trás, e uma coisa dourada fugiu de sua mão. A Trimiftah! Pulei para a frente e a agarrei, triunfante. Entretanto, embora o encantamento houvesse cessado, o navio já se incendiara. Outro solavanco, e caí de joelhos. Não foi meu golpe, mas o fogo que fazia o Castelo agonizar! Quando voltei minha atenção para Kakazar, porém, o maldito cantava para outro sopro do dragão. Meu corpo estava fundente, não agüentaria. Minha mão soldara-se ao cabo da espada partida; eu não teria tempo de alcançá-lo, tampouco de fugir convés acima. Era meu fim, de qualquer jeito.

Não deixaria que ele tivesse a chave.

Sobrevoávamos o mar, então me arremessei com força contra o casco frágil do navio. A madeira cedeu e meu corpo mergulhou no espaço vazio do céu noturno. Ouvi o grito de ódio do traidor, do ladrão, do assassino, e pude sorrir.

Um golem atravessando os céus.

Estão todos mortos; eu mesmo morrerei ao atingir o oceano. Minha mão fundiu-se em volta da Trimiftah, nosso tesouro. Meu capitão nunca descansaria em paz se Kakazar a tivesse obtido, cumpri meu último dever. Ela agora se perderá para sempre nos abismos do mar. Junto comigo.


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Comentário do Autor: no folclore judaico, o golem (גולם) é um ser animado que é feito de material inanimado, muitas vezes visto como um gigante de pedra. O nome é uma derivação da palavra gelem (גלם), que significa "matéria prima".

O conto foi escrito em cima de uma canção muito conhecida da Legião Urbana, "Metal contra as nuvens". Aliás, esse poderia ser o título do conto.

2 comentários:

  1. Rá! saquei a referência já na primeira frase! XD
    Adorei o conto, excelente ideia, gosto da dinâmica da narrativa. Mas eu tenho a repedida impressão de que vc não explora os sentimentos dos personagens, ou não explora os próprios sentimentos, sei lá (o psicólogo fajuto insiste em dar pitaco)
    Fazendo o exercício mental de se colocar no personagem (acho q vc tem ideias fantásticas, excelente dinâmica narrativa, mas não parece fazer isso com profundidade):
    Senhor golem: Euforia e completude -> desconfiança -> incredulidade / dor / ira -> puro desespero irado, eco dos gritos de pura dor dos amigos -> suprassumo do ódio -> suicídio e exultação -> só aqui começa a narrativa

    Depois disso tudo provavelmente o primeiro impacto sensorial (depois de um horror desses a mente tende a vagar p/coisas mais concretas até como forma de se proteger) seria o silêncio e o frio (se golem sentir mudança de temperatura XD ) A bicha tava nessa loucura, de todos os sentidos e emoções, acabou de sentir as as piores e mais fortes emoções da vida, com tudo literalmente em chamas e agora está em pleno ar, o som apenas do vento, uma liberdade vazia, por assim dizer, da dor lancinante para um vazio sufocante, insuportável, a realidade depois do horror pode ser mais assustadora, anseio novamente pela dor, que é melhor do q esse vazio inominável. Se eu fosse o golem eu ficaria feliz por estar próximo a morte, nesse caso, seria uma esperança na morte.

    Depois disso a narrativa deveria ir pelas coisas q mais marcaram o golem, a felicidade exultante há poucos minutos, mas a uma vida inteira de distância. O ódio. A incredulidade (aliás, ele se perguntar pq ainda o chama de amigo foi sublime, seria de partir o coração se melhor colocado em uma narrativa) Como a sua vida chegou até ali, para onde ela vai (a felicidade da morte q se aproxima, retomada do vazio insuportável).

    Do jeito q está parece uma narrativa de alguém q teve essa excelente ideia e não do golem, justamente por faltar esse envolvimento emocional. Explorando as emoções desse personagem e utilizando um pouco (em demasia soaria falso nesse caso) do lirismo q eu sei q vc tem esse conto pode se tornar simplesmente sublime.

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    1. Comentários anotados. Tenho uma ideia de reescrever todos os contos quando o universo estiver mais desenvolvido, e vou usar essas ideias (:

      O comentário sobre ainda chamar o feiticeiro de amigo tem a ver com o Ha antes do nome - um pronome de tratamento entre o povo do deserto para se referir a amigos. Por isso o golem muda de Ha Kakazar para Kakazar.

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