sexta-feira, 16 de outubro de 2009

[Conto] A Princesa da Cúpula de Vidro

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A Princesa da Cúpula de Vidro

(Enfim, um dos muitos contos que virão sobre o universo de Aera, o mundo dos Deuses Ventos)
(histórias de Ka'aretama, as selvas do Sul)

I

_ Me diz outra vez: ela é mesmo bonita?

_ Muito! Ela é tão bonita que um dia a Primavera parou de viajar só pra ver ela, e fez até florzinhas nascerem nas pedras!

_ Ah, isso sim deve ser mentira! – riu a garota. 


O menino fez um bico pra chacota da amiga, mas não insistiu. Ele sabia que era verdade, ele mesmo vira as flores de pedra nascendo do chão e as árvores de bronze florindo pétalas de cobre; disso ele nunca esqueceria. Tinha então apenas seis verões de idade, mas aquilo o impressionou tanto que mesmo quatro anos depois guardava a lembrança, como a um tesouro: flores nascendo em todos os lugares imagináveis, belas, e no centro das três árvores de metal, a Princesa do Vale.
_ Mas agora deixe de histórias: como ela era?
_ Muito bonita!

_ Isso você já me disse, mas como ela se parecia?
_ Ah... ela tinha cabelo grande e encaracolado, cor-de-terra. A pele dela era morena, queimada, mais ou menos como a sua. Ela ficava dentro dum grande vidro cheio de água, que fazia o cabelo dela ficar dançando, assim, parecia que ela tava dormindo... Muito bonito!

_ Hum...

Thuga balançou os pés, pensativa, do alto do galho onde estavam. Queria saber como era ser uma princesa, ser filha de um rei. Um rei, ora essa. Ser amada e ter tudo o que quisesse, quando quisesse e como quisesse. Um rei não deixaria sua filha para trás. Definitivamente, seria muito bom ser uma princesa. Passou a mão pelos cabelos curtos, pensativa.

_ Eu tinha cabelo comprido... Gostava deles. Pena que tiveram que cortá-los. Será... será que eu sou tão bonita quanto a Princesa?

_ Mas é claro que não! – disse o menino, sem pensar – Quer dizer, você é bonita, Thuga, mas ela é uma princesa, e tinha um vestido e também, ela tinha, sabe...

A garota riu da falta de jeito do amigo. Filo não tinha irmãos mais velhos, e os jovens da pequena vila não deviam dar atenção ao menino. Isso fazia de Thuga a primeira garota mais velha com quem ele conversava, e várias vezes ele ficava sem jeito. A diferença de idade não era grande, é verdade, ele com dez e ela com quinze, mas para ele parecia uma vida inteira. E Thuga ria, até Filo desistir de se explicar. Adorava o pequeno amigo.

_ Tá bom, não tenho chance contra sua Princesa.

Um vento frio farfalhou as folhas da alta árvore onde estavam.

_ Vamos descer, Filo? Escureceu cedo... Seus pais podem estar preocupados.

_ Escureceu cedo porque é inverno – disse o menino – E daqui a alguns dias vai começar a Temporada dos Furacões. Ainda bem que a Princesa protege o vale!... Vamos, duvido que você desce a árvore mais rápido do que eu!

_ Há! Você vai é ficar para trás!

E entre risos, voltaram para casa.

II

A noite caía no Vale de Altasávores, e ao som das cigarras as lamporquídeas começavam a iluminar os pequenos povoados. Os cidadãos se recolhiam em suas casas-árvores, fugindo da brisa fria das noites de inverno, e preparavam o jantar. Os feiticeiros azuis recolhiam as oferendas do povo, enquanto compunham encantamentos para uma noite tranqüila. Comeriam frutas silvestres, porque mesmo no frio mais rigoroso haveria árvores no País do Sul para prover frutas. A refeição não seria das mais fartas – estocavam – mas ainda assim se podia dormir satisfeito.

Na casa de Filo, havia cinco à mesa. As flores iluminavam as paredes de madeira branca, e havia peles grossas sobre as janelas redondas para barrar o frio. Os cinco também vestiam peles, apesar da pequena fogueira de madeira-das-fadas aquecer o interior. O fogo não desprendia fumaça, mas um aroma doce, deixando a sala de jantar aquecida e perfumada.

Therão, o pai, sujeito forte e de traços duros, comia com gosto uma fruta-pão e bebia suco de glipoma, uma frutinha vermelha em forma de oito, muito doce e popular em Altasávores. Acácia, a mãe, mulher pequena e de rosto rosado, bebia o sumo de uma grande melancia, enquanto Filo dividia gomos de laranja com Thuga. Melesio, o visitante de vestes azuis, apenas bebia do suco vermelho.

_ Por todos os Ventos, coma alguma coisa, Mel, ou será que feiticeiros não comem? – riu o anfitrião.

_ Comemos sim, velho amigo, mas hoje estou sem fome. Beberei apenas suco.

_ Desculpa a pouca comida, Mel, você sabe que não temos muito – desculpou-se a mãe – Mas não se acanhe em nos acompanhar.

_ Realmente não tenho fome, muito obrigado, Cácia. A Casa dos Mais Velhos está cheia de comida, oferendas do povo, mas hoje quero jantar com meus amigos – sorriu, ajeitando as tranças de seus cabelos grisalhos. Como qualquer habitante do País do Sul, não tinha barba.

_ Mas nosso vilarejo é tão longe do seu, não precisava ter se incomodado.

_ Não foi incômodo, gosto de viajar entre as vilas. E também, daqui a alguns dias Thuga terá que voltar pra casa, e não poderei mais vê-la.

_ Na verdade, ela passará o inverno conosco, Mel – explicou a mãe – A estação já vai alta, não seria seguro viajar tão perto da Temporada dos Furacões.

_ Além disso, eu fugi de casa, não pretendo voltar – respondeu a menina.

A mesa ficou em silêncio, restando apenas o barulho dos insetos lá fora.

Já se passavam duas semanas desde que Therão havia encontrado a jovem caída em meio aos arbustos, perto da Floresta Escura, e deu graças ao Vento Sul por tê-la achado antes dos perigosos Ladrões de Ar. Estava desacordada e muito machucada, com galhos e folhas presos nos cabelos, seu vestido estava rasgado e sujo. Levou-a para casa e Acácia cuidou dela. Tiveram de cortar seus cabelos, tão emaranhados que estavam, e lhes dar roupas novas. Em dois dias ela acordou, ainda fraca, e o casal de camponeses decidiu hospedá-la até que se recuperasse. Ela não saía muito dos arredores da casa, e mesmo porque Therão e Acácia moravam longe do restante da vila. Logo, logo ela e Filo se tornaram amigos.

Thuga não era do Vale, mas das colinas mais além. Fugira de casa, onde morava com o tio, para procurar o pai. O pai de quem pouco se lembrava, mas que amava, e que sonhava um dia reencontrar; seu sonho desde pequena. Foi numa noite chuvosa de outono, após uma grande discussão, que decidiu fugir.

Procuraria pelo pai. Partiu antes mesmo de raiar o dia, levando consigo apenas sua própria roupa, um saco de água, sementes de casa-árvore, frutas e o espelhinho de prata, presente do pai em seu aniversário de sete verões, seu tesouro. Viajou alguns dias até atingir os limites de Altasárvores e se perder nas encostas. Andou dois dias inteiros por entre as árvores do vale, acabando por cair num barranco e desmaiar. Ou alguma coisa assim... Thuga não se lembrava direito. Quando Therão contou onde a encontrara, Acácia beijou a costa das mãos para espantar o azar, agradecendo à Brisa da Graça, porque a menina tinha caído muito perto do território dos Ladrões de Ar. As feras temidas.

Tudo isto Melesio sabia, Therão lhe contara dias atrás sobre a pequena hóspede de sua casa, e ele tornou-se amigo da jovem Thuga. Admirava-lhe, porém, que ela ainda não tivesse desistido de sua viagem.

_ Thuga – disse ele – seu tio já deve estar bastante preocupado...

_ Tio Mel, eu já me decidi: vou encontrar meu pai. Sei onde ele mora, e me lembro de pequena da nossa casa. Foi exatamente por isso que briguei com titio, não vou desistir de procurá-lo.

_ Tudo bem, Thuga, tudo bem. Deixemos isso para o fim do inverno – disse o feiticeiro.

A menina calou-se, pensativa, mastigando seus gomos. Outra coisa ia-lhe na alma.

_ Tio Mel, conta a história da Princesa do Vale? – disse, de súbito.

_ Mas é claro, Thuga, é claro – o feiticeiro olhou para o casal – Therão, Acácia?...

_ Sem problemas, Mel, vá em frente – respondeu Therão.

_ E você, Filo, não cansou da história? – perguntou, sorridente, ao filho do casal.

_ Nunca! Conta ela outra vez.

_ Então, ouçam...

Melesio fechou os olhos, e a luz da lamporquídea diminuiu, deixando os cinco na penumbra. Tirou do cinto pequenos frascos de ferro, e os pôs sobre a mesa. Destampou-os, e começou a desenhar no ar. As tintas fosforescentes deixaram os fracos e elevaram-se, acompanhando os movimentos do feiticeiro, dançando. Uma paisagem se formava, uma paisagem pintada no escuro. Melesio começou:
Há muito tempo atrás, antes ainda dessa casa ser plantada, havia um Senhor poderoso que governava com sabedoria todas as tribos. Era amado pelas aldeias, dos vales e das colinas, e muito respeitado. Tornou-se Rei, e seu reino foi próspero e poderoso.
Mas sempre há inveja.

Não era possível invadir o reino, tampouco incitar a revolta; mas um poderoso Feiticeiro da Praga descobriu o ponto fraco, algo tão simples e ao mesmo tempo tão poderoso: a vida de sua filha. Fez alianças com o povo-fera em troca de mais poder, e caçou tesouros em vales profundos e esquecidos. Mais forte, compôs um encantamento para acabar com a vida da pequena princesa. A menina caiu no sono dos doentes.

O Rei desconfiou de magia, e chamou o mais poderoso feiticeiro azul do reino para curá-la. Exultou quando a vida de sua filha foi salva, mas a maldição era forte demais: a princesa dormiria para sempre. Foram dias de luto aqueles, para todo o povo. Vários feiticeiros azuis foram convocados para libertar a menina de seu sono perpétuo, mas nada conseguiram. Vários foram mandados para caçar o feiticeiro da praga; também não tiveram êxito. E os anos passaram.
 
Foi numa manhã de outono que, já resignado, o Rei decidiu construir o mausoléu para sua filha amada. Foi então que Huali, o Herói das Asas de Vidro, trouxe a cabeça do feiticeiro. O Rei chorou de felicidade, e ofereceu ao herói o que ele desejasse. Huali sorriu e pediu: dê-me a beleza de sua filha.

“Desde o primeiro dia que a vi, a amei profundamente. Foi por ela que passei dois anos caçando esse maldito, e por ela que vim aqui. Peço que me dê sua filha para ser a Filacteria do vale de meu pai. Construa o seu mausoléu em nosso vale”.
 
Em Aera, nosso mundo, todo inverno traz a terrível Temporada dos Furacões, quando ventos poderosos rasgam a terra e o povo-fera anda livre, por dois longos meses. Por isso que cada vila, povoado ou cidade tem uma filacteria para protegê-los, um artefato abençoado pelos Quatro Ventos para manter aquela região intacta. Sem uma filacteria, não pode haver povoado. Há homens que aprenderam a viver sem elas, sim, mas são povos bárbaros ou nômades, e devem fugir ou se refugiar sempre que a Brisa do Inverno começa a soprar. Somente um Herói pode criar uma, porque somente um Herói tem a bênção dos deuses. E, o requisito maior e mais caro, o Herói deve amar o objeto que se tornará a filacteria.

Huali cumpria todos os requisitos para o ritual, e tinha o débito do Rei. Sua proposta foi aceita. Construiriam um mausoléu magnífico no ponto mais alto do vale. Para isso, o Rei chamou um feiticeiro de cada casta para construí-lo, para que fosse tão belo que seria lembrado por muitos e muitos anos.

O feiticeiro azul compôs o poderoso encantamento para protegê-la eternamente.

O feiticeiro pardo retirou o bronze mais puro dos veios da terra.

O feiticeiro vermelho moldou o bronze em três belas e magníficas árvores.

O feiticeiro branco congelou sua juventude: ela dormiria para sempre, mas não envelheceria um dia.

O herói construiu uma cúpula com suas asas de vidro, que encheram de água e onde repousaram a princesa. Ele lhe deu a bênção dos heróis, e então foi criado o Vale de Altasárvores.

E isso foi há muito e muito tempo, quando ainda não havia casas plantadas no vale, quando apenas os animais e o povo-fera aqui habitavam. Então, tribos migraram e aqui se estabeleceram. Dizem que a própria Brisa da Primavera parou sobre a montanha e presenteou a princesa com suas flores, e dizem ainda que quem orar a prece do sul ao pé da cúpula de vidro, terá seu sonho realizado. A cada solstício de verão, o povo sobe as altas montanhas para agradecer à Princesa do Vale por suas casas e por sua terra, e dizem que ela já realizou muitos sonhos.

A imagem da princesa desenhada dentro da cúpula de vidro ainda pairou por alguns segundos no ar, antes de Melesio, com um gesto suave, apagá-la. A sala então voltou a sua luminosidade normal, as tintas voltaram aos seus frascos, e Melesio sorriu.


_ Que acharam da história?

Os outros agradeceram e elogiaram, mas Thuga nada disse. Não que não tenha gostado, achou a história linda, mas uma idéia se formava em sua cabeça. Orar a prece do sul e ter seu sonho realizado. Seu sonho. Encontrar seu pai.

_ Quando eu crescer, vou viajar e me tornar um herói igual o Huali! – disse Filo, subindo no banco e quase caindo em cima da mesa.

Todos riram. O jantar terminava. Melesio se levantou.

_ Tio Mel, antes de ir, me explica: porque as pessoas só vão até a princesa no solstício de verão? – perguntou Thuga.

_ Ora, o caminho é longo e perigoso. As pessoas só viajam até lá com um feiticeiro da Casa dos Mais Velhos, porque a trilha passa pelo território dos Ladrões de Ar, e o guardião da princesa – toda filacteria tem um guardião, você sabe – não permite que se aproximem sem cantarem a canção secreta.

_ E como é essa canção? – perguntou ela, com curiosidade.

Melesio olhou um pouco desconfiado para a pequena.

_ Sinto muito, Thuga, não posso dizê-las, servem para proteger a Princesa de ladrões e pessoas menos decentes. Mas eu mesmo nunca fui até a princesa.

_ Nunca? Por quê?

_ Isso já seria história demais por uma noite – riu.

A menina fez um uma careta de desaprovação para o velho feiticeiro, mas logo deu um sorriso e começou a arrumar a mesa. Melesio sorriu para a curiosidade da menina, ajudando também. Era hora de partir. Agradeceu o suco, abençoou-os e se despediu. Teria ainda que caminhar bastante para chegar em casa, mas não haveria perigo para um feiticeiro azul, mesmo à noite, mesmo no inverno.

Acácia e Therão foram para seu quarto e armaram suas redes. Thuga dormiria com eles e Filo iria para o seu próprio quarto. Antes de ir, porém, ela chamou o pequeno amigo.

_ Filo, vem cá. Me diz, você sabe como são os ladrões de ar?

O menino arregalou os olhos de medo antes de responder.

_ Não, eu nunca vi um não. Mas papai disse que são iguais a pessoas altas, com pele escura como a de um lobo, garras nas mãos, sem boca e sem nariz, e olhos que brilham no escuro. Do cabelo e das costas dele sai fumaça preta, como se fossem pêlos. Eles roubam o ar dos pulmões das pessoas, até elas morrerem – disse o menino – Por isso que quem mora perto deles sempre dorme com um pedaço de pano em cima do rosto.

_ É pra onde que eles moram?

_ Você ta querendo ir lá?! – disse Filo, quase gritando.

_ Shh! Faz silêncio! Tio Mel disse que a trilha pra ir pra princesa passa por lá, então eu tenho que saber onde é.

_ Você vai ver a princesa?!

_ Shh! Já disse pra fazer silêncio! Como você quer ser um herói se morre de medo assim?

_ Eu não tenho medo... – resmungou o pequeno – Mas o quê que você vai fazer lá?

_ Você é tonto ou tá com sono? Tio Mel disse que quem orar no pé da cúpula de vidro vai ter seu sonho realizado. Eu quero encontrar meu pai.

_ Mas você disse que sabia onde ele morava!

_ Eu... – a menina corou – eu não sei. Por isso preciso da ajuda da Princesa. Mas e você? Não quer se tornar um herói? Não quer ver a princesa? A última vez que você a viu você tinha o quê, seis verões de idade?

_ Eu quero ser um herói sim! – então ele olhou para os lados, falando em voz baixa – mas o que vamos fazer? Ir até lá?

_ Eu vou. Se eu pedir, seus pais não vão deixar, e Tio Mel não sobe a trilha. Olha, vou amanhã de manhã, depois que seu pai sair pra caçar. Só me diz qual é o caminho. Você sabe, não é?

_ Sei sim... Mas ele é perigoso! Quê que você vai fazer com os ladrões de ar?

_ Seu pai me disse mais cedo que eles só aparecem de noite. Por isso vou de manhã. Você vem comigo ou não?

_ Eu... mas é muito longe!

A menina soltou um suspiro de impaciência. Não tinha medo. Seu pai lhe ensinou que não se devia ter medo. Iria nem que fosse sozinha.

_ Pode ficar então, Filo – disse, nervosa – Eu vou de manhã, chego antes da hora do jantar.

E se foi para sua rede.

_ Thuga, espera! – ele chamou, e em seguida correu para seu quarto. Voltou trazendo um saco de peles cheio – Leva essas coisas com você. Ouve só, não esquece: glipomas pro homens-besouro, em troca de informação. Quando você encontrar as árvores-de-pedra, dá esses pedaços de carvão pra elas te deixarem passar; logo depois, não esquece, você tem que fazer uma tocha: leva esses gravetos secos e essa palha. E então, você tem que tomar muito cuidado, você vai estar no território dos ladrões de ar. Eles são os mais perigosos, são do povo-fera. Usa o lenço pra proteger seu rosto e... – o menino fez uma pausa, olhando para o fundo do saco – e leva minha espada – disse ele, corando.

E entregou a espada. Era um facão velho, de um metro de comprimento, com cabo de madeira podre onde algumas tiras de algodão tentavam lhe dar um ar mais nobre. Havia trincas no fio da lâmina, mas estava tão polida quanto as mãos do pequeno Filo podiam ter trabalhado. Thuga se impressionou com aquilo tudo, e então entendeu o que se passava: o pequeno amigo devia estar planejando sua viagem até a Princesa há muito tempo, colhendo informações sobre a trilha, mas talvez a coragem lhe faltasse. Sorriu para ele, e agradeceu muito tudo aquilo. Já não estava com raiva do amigo.

_ Mas, e o Guardião? – Thuga fez um bico desanimado – como vou passar por ele?

Filo olhou para o quarto dos pais, pra se certificar de que eles não ouviriam, e começou a cantar baixinho:

_ Vítreo vidro que vi
Vívido é o viço daqui
Do verde vale que vim
das vias, sou volatim
Víride visgo que vejo
Ventos! À vera desejo
ver vedro vidro qu’encerra
a Princesa do alto da serra

_ Mas, que é isso? – perguntou Thuga

_ A canção do Guardião!

A menina ficou espantada. Como o menino conhecia a canção que nem mesmo Melesio queria cantar?

_ Eu lembro dela de pequeno – explicou Filo – quando subi o vale. Papai e mamãe não foram, acho que eles nunca subiram, mas me deixaram ir com um feiticeiro da Casa dos Mais Velhos. Lembro que ouvi ela quando era bem pequeno, mas eu não esqueci!

_ Filo, você é demais! Tem mesmo certeza de que não quer vir comigo?

_ Eu... – ele baixou os olhos – Não, não vou não. Pede pra Princesa me transformar num herói quando eu crescer?

_ Peço sim, Filo, peço sim – respondeu Thuga, passando a mão nos cabelos cacheados dele – Muito obrigado pela ajuda. Mas não fala nada pros seus pais antes de eu chegar, senão eles vão atrás de mim e não vão deixar eu ir.

_ Não falo nada! Prometo!

_ Brigado, Filo. Você é um amor.

_ Só mais um coisa, Thuga: toma muito, mas muito cuidado mesmo com a minha espada, tá?

A menina olhou para o facão trincado e velho, mas lembrou-se de que também tinha um tesouro, que amava acima de muitas coisas. Pôs a mão sobre o busto, para sentir o espelhinho de prata que ganhara do pai.

_ Você tem minha palavra, Filo. Juro por todos os Ventos.

Abraçaram-se e foram cada qual dormir.

III

“Glipomas pros besouros, carvão pras árvores, depois fazer uma tocha, e proteger o rosto”. Thuga repetia mentalmente as instruções que recebera na noite anterior, como um mantra. Em seguida, cantava a canção secreta em voz baixa, para ter certeza de que não a esqueceria. Sentiu um pouco de pena por ter deixado Filo para trás, mas nada podia fazer, não podia obrigá-lo a vir. Olhou para a espada que trazia à cintura, perguntando se ela seria realmente útil. Andava agora por uma colina de pequenos arbustos, o caminho que o menino indicou, antes de entrar na floresta fechada. O sol ainda não atingira o fundo do vale onde estava a pequena vila de casas-árvore, e havia neblina. Ela se agasalhara o melhor que podia, levando frutas e suco para se alimentar no caminho. O céu clareava acima dela, as lamporquídeas já se apagaram junto com as estrelas, e as flores se abriam para a chegada do sol. Seria um dia bonito.

O vestido de Thuga não a atrapalhava a caminhar. Era justo ao corpo, sem babados, de algodão resistente que não se rasga facilmente. Peles de coelho branco adornavam as mangas, protegendo os ombros e o braço, e um capuz das mesmas peles protegia a cabeça. Além dos agasalhos de peles, não havia outros adereços, e o tecido era todo bordado com desenhos de animais e árvores. As peles não se sujavam com facilidade, o tecido tampouco; as botas eram de couro resistente. As roupas do povo do sul eram as melhores para se andar na floresta, e ninguém dentre os quatro países se embrenhava na mata fechada com mais naturalidade nem com tanta agilidade. Eram o povo das selvas.

Cruzando a colina de arbustos, Thuga usou o facão para abrir as folhas e entrar sob as árvores. Pelo menos para limpar o caminho ele serviria. A noite parecia não ter deixado ainda a floresta, se escondendo sob as folhas das árvores, teimosa com a chegada do sol. A menina tirou da bolsa uma pequena flor de lamporquídea. Na escuridão, as pétalas da pequena planta se abriram e seu centro passou a emitir uma fraca luz amarelada. O caminho subia, subia sempre, entre árvores a princípio pequenas e finas, até que então começaram a aparecer as gigantes do vale. Árvores tão altas que não era possível ver o fim de sua copa, e tão grossas que dez homens não conseguiriam abraçá-las. Várias outras árvores cresciam à sombra dessas, fechando o caminho mais e mais. Mas Thuga era nativa do país do sul, e se esgueirava e circundava os obstáculos com tanta graciosidade que quase não precisava recorrer ao facão. Caminhou assim por algum tempo, até o sol lograr tocar o fundo do vale, embora sob as árvores ainda houvesse penumbra. Caminhou e caminhou, mas chegou a uma parte da trilha que não podia mais seguir em pé. Guardou o facão, agachou-se, cravando as mãos na terra fofa e fértil, em busca de apoio, e começou a escalar, lentamente. Ganhou apenas poucos metros, quando teve que desviar muito para o lado para contornar o barranco. Após alguns minutos, já não sabia a direção que devia seguir. Encontrou um pequeno nicho nas grandes raízes de um colossal jatobá e resolveu descansar ali. Sentou-se, bebeu suco de glipoma do seu cantil feito de coco, e descansou a cabeça nos joelhos. Fechou um pouco os olhos.

Ouviu um tilintar de gravetos e alguma coisa passando perto de sua perna; levantou a cabeça assustada. Pequenos vultos correram de sua visão, escondendo-se atrás das raízes, e nos buracos da terra. Pareciam insetos.

_ Desculpe assustá-los, mas estou perdida e preciso de ajuda.

Um momento de silêncio, antes de alguns deles se reaproximarem. Eram os homens-besouro, que Thuga nunca tinha visto. Tinham o tamanho de um punho fechado, alguns eram menores, todos de pele escura e brilhante. Da cintura para cima, eram homens, com lanças feitas de espinhos de palmeira e com capas de pele de rato. Da cintura para baixo, besouros, grandes como escaravelhos, de quatro patas. Olhavam desconfiados para a menina, e com desejo para o suco de glipoma que escorria de seu cantil.

_ Que quer a humana na floresta, sozinha? – disse um musculoso homem-besouro, gesticulando seus minúsculos braços para Thuga.

_ Quero encontrar a trilha para a Princesa, a filacteria que protege esse vale na Temporada dos Furacões.

_ Conhecemos o poder da Princesa; nunca subimos sua trilha, mas sabemos sua direção. O que você pode oferecer para O’degq, Senhor dos Castelos de Esterco?

Thuga ficou imaginando como seriam os tais castelos de esterco, mas achou indelicado perguntar e se apressou logo e
m responder:

_ Trago glipomas para O’degq.

Os demais começaram a bater as pernas no chão, fazendo o som de pequenos gravetos se quebrando. Pareciam contentes. Ela mergulhou a mão na bolsa e tirou um punhado das frutinhas, e as colocou no chão. Os homens-besouro correram para a pilha e cada um, de costas, começaram a empurrar as pequenas frutas para seus esconderijos sob a terra e desapareceram.

_ O sumo da glipoma é doce, mas ela brota muito alto e longe de nossa casa – disse O’degq, o único que sobrou – Obrigado pelo presente, humana. Siga essa direção, contornando a pedra deste barranco, e a subida ficará mais tranqüila. Siga até ouvir o barulho de água correndo. Quando encontrar o Grande Rio que limita nossa terra, siga seu curso para cima. Depois a trilha fica mais clara.

_ Ora, muito obrigada – agradeceu Thuga, sem coragem de se mexer muito para não esmagar acidentalmente alguns deles – Que a Brisa da Graça te acompanhe, O’degq, Senhor dos Castelos de Esterco.

_ E que ela sopre sobre ti, humana – disse ele, também sumindo numa reentrância da terra.

Thuga esperou mais um pouco, com medo de ainda machucar algum deles, e então se levantou. Cravou novamente a mão na terra e seguiu a direção que o pequeno ser lhe indicara. Realmente, após ela contornar a pedra, a subida se tornava menos íngreme, com mais apoios para os pés e as mãos. Logo já podia caminhar de pé. Andou algum tempo até ouvir o barulho de água, e se dirigiu para lá.

Thuga não pôde conter o riso. O Grande Rio era um córrego de no máximo um palmo de largura, que corria entre raízes e pedras. Ela pôs a mão em conchas e bebeu da água pura, lavou o rosto suado. Olhou para cima, mas o caminho ainda parecia longo. Começou a seguir o curso do pequeno riacho.

IV

Já se passara uma hora desde que Thuga parara para almoçar. Comeu quase todo o seu estoque de comida, e ainda tinha um pouco de fome. Já passara da nascente do Grande Rio, o fim do caminho indicado, e depois dali uma leve trilha recortava o chão da mata, fácil de ser identificada, e seguiu por ela. O próximo passo seriam as árvores-de-pedra.
Pedregulhos começaram a despontar no chão, e o solo se tornou mais raso. Não havia arbustos nessa parte da floresta, tampouco árvores menores, apenas os grande troncos das árvores gigantes e pedras. Um pouco à frente, porém, a menina divisou um pequeno bosque, um tanto estranho. O tronco das árvores era coberto de musgo, mas em alguns cantos via-se a face limpa da rocha. As folhas tinham uma coloração metálica, brilhantes com o pouco sol que atingia o chão, pareciam esmeraldas. As frutas eram seixos amarelos, e havia muitos no chão, eram as árvores-de-pedra. As primeiras eram pequenas, quando muito tinham o tamanho de Thuga, mas adiante elas cresciam alto, tão alto que atingiam vinte, trinta metros. Seixos maiores pendiam dessas, uma armadilha perigosa para quem andasse por baixo.

A menina parou no limite do bosque, ajeitou as roupas um pouco sujas de terra, pigarreou e disse:

_ Com licença, árvores-de-pedra, gostaria de passar para ver a Princesa do Vale.

Nenhuma resposta. Thuga repetiu a pergunta, sem muito êxito. Temerosa, deu um passo, fazendo menção de entrar no bosque.

_ Com licença...

E ela deu um pulo para trás. Um grande seixo rolado, do tamanho de um coco, caiu poucos metros à sua frente, como se tivesse sido arremessado pelas árvores atrás. Começou a ventar, e ela ouviu então um farfalhar de folhas e um tilintar de pedras. Mas não, não estava ventando. As árvores estavam de movendo sozinhas, fechando a entrada com seus galhos. E nada diziam.

Impaciente, Thuga tirou da bolsa os pedaços de carvão, e os mostrou para o bosque, nervosa.

_ Eu trouxe um presente para vocês, mas como me destratam assim sem nem ao menos me darem satisfação, vou-me embora agora mesmo, árvores mal-educadas.

E girou nos calcanhares para ir embora. Antes de dar um passo, entretanto, ouviu novo farfalhar e tilintar. Sorriu, seu plano funcionara. Um som de pedras se chocando fez-se ouvir, imitando um tambor agudo. Ouviu então uma voz.

_ Pequena, pequena, que fazes aqui?
Que trazes pra nós, que há pouco eu vi?
É pedra, é pedra? É pedra, é sim?
Ou é pedra preta, que trazes pra mim?


Thuga olhou para o bosque, mas não sabia quem cantava, nem sabia como responder a canção. Resolveu perguntar normalmente:

_ Vocês também são do povo das fadas? Conseguem falar?

_Das fadas, das fadas? Sim, nós somos sim
Nós somos das fadas, do povo eudaim
Falamos, falamos, podemos ouvir
Mas peço, não fujas, não queiras fugir
 
Presente, presente, que trazes pra nós?
Não fujas, não fujas, não nos deixes sós
É pedra, é pedra? É pedra, é sim?
Ou é pedra preta, que trazes pra mim?

Thuga achou graça e beleza naquela canção, marcada pelo bater rítmico das pedras. Queria poder responder igualmente, mas nunca fora boa com improvisos. Lembrou-se das poucas aulas de poesia que seu tio lhe ensinara, ensaiou alguns versos na cabeça e respondeu.

_ É pedra, é preta, que trago, é sim
É pedra bem preta que entregar eu vim
Mas peço, me dize, e sê complacente
Se posso, se deixas, eu seguir em frente?

_ É pedra, é preta, se for, dá-nos cá
É pedra carvão, que tu trazes de lá?
Se for pedra preta, carvão, olha lá!
Se for o carvão, te deixamos passar


Thuga sorriu para o bosque, fez um pequeno agradecimento e depositou o carvão nas raízes das primeiras ávores-de-pedra. Elas rangeram, rocha atritando rocha, e recolheram o presente. De novo o som de vento sem vento, e as árvore abriram caminho para a menina entrar. Ela inspirou fundo, beijou as costas da mão para espantar o azar, e entrou no bosque de pedra.

V 

O bosque era realmente bonito visto de dentro, não havia apenas folhas cor de esmeralda, mas flores de rubis e outras de safiras. Temerosa dos perigosos seixos que pendiam sobre sua cabeça, Thuga não tocou em nada. Colheu apenas alguns pequenos no chão como lembrança, e colocou-os na bolsa.

Ao sair do bosque, ela agradeceu muito às árvores-fadas, e se despediu. O sol já ia muito adiantado, ela perdera muito tempo admirando o bosque, e se não se apressasse a noite a surpreenderia na floresta. Na pressa, esqueceu de acender a tocha.

Caminhou por uma trilha um tanto fechada, várias vezes a perdeu e só com alguma dificuldade a reencontrou. Havia arbustos agora por todos os lados, de folhas altas e largas, e árvores de todos os portes. Ela olhou para baixo, para trás. Já estava muito acima do vale, não deveria estar longe do topo. Olhou para cima, mas as grandes árvores com suas copas enormes bloqueavam a visão. Continuou seguindo. 

Ouviu um barulho atrás de si.

Virou-se, apreensiva, com a espada de Filo na mão. Não havia nada. Nem animal nem planta, nem fada nem fera. Começou a ficar preocupada. Outro barulho, agora mais perto, vindo de suas costas. Ela rodou sobre si mesma, mas nada viu. Os arbustos se mexiam. Havia alguma coisa ali. _ Quem está aí? Xô, xô, me deixa em paz.

Agora ela teve certeza de que ouvira risos. De um grande tufo de grama, ergueu-se um ser-homem das sombras, da metade do tamanho de Thuga, magro, todo feito de grama. Seus olhos eram verdes como as folhas das árvores-de-pedra, e seus dentes eram amarelados como capim no outono. Não tinha pés, sua perna nascia do chão como se ele próprio fosse um arbusto que brotasse. Seu cabelo era um emaranhado feito de raízes verde-escuras e úmidas. Ele sorriu o sorriso dos duendes, e se aproximou de Thuga.

_ Ora vejam, ora vejam, uma humana aqui. Veio sozinha, eu vejo, ora vejam.

_ Não se aproxime, eu não sei seu nome, e tenho pressa – respondeu ela, levantando o facão.

_ Ora vejam, calma criança. É uma criança, não é? Mesmo uma humana criança é maior do que eu, ora vejam! – e riu alto.

No segundo seguinte ele desapareceu.

_ Bu!

Thuga deu um pulo tão alto que quase arremessou a espada de Filo para longe. A criatura havia surgido exatamente do seu lado.

_ Pare com isso, já disse – gritou, se afastando – Tenho pressa. Não se aproxime mais, senão vou te cortar.

_ Me cortar, ela disse, ora vejam. Não se corta Kkortos, o senhor da trilha!

_ K-kortos? Você é uma fada?

_ Uma fada, sim, Kkortos. Eu sou Kkortos, qual o nome da pequena?

_ Agathugata, mas meu apelido é Thuga.

Nesse ponto, Kkortos deu uma sonora risada.

_ Oh Céus, oh Ventos! Mas que nome! Não saia daqui, não saia, Kkortos já volta – e se fundiu ao mato, como fizera antes.

Thuga ficou preocupada. Fadas não são realmente más, pelo menos a grande maioria é boa. Kkortos devia ser um brincalhão, estava brincando com ela. Mas o senso de humor de uma fada pode ser perigoso. E se... e se ele fosse do povo-fera, e a tivesse enganado? Diferente das fadas, o povo-fera é ruim, atacam as pessoas, as devoram. Se ele fosse do povo-fera, estava em apuros.

Lembrou-se de acender a tocha.

Rapidamente, antes que Kkortos voltasse, arrancou a palha e a madeira seca de sua bolsa. Mas nem bem a fumaça começou a aparecer, ouviu um barulho próximo. Além de Kkortos, havia quatro iguais a eles.

_ Ora vejam, ora vejam. Esta á Agathugata, meus amigos, Agathugata! Que nome!

_ O que tem meu nome? – perguntou a menina, sem parar de atritar os gravetos, disfarçadamente.

_ Um nome curioso, oh sim – riu um homem-grama menor que Kkortos.

_ Muito, muito! – concordou outro.

_ E o que veio fazer aqui, oh Agathugata?

_ Eu vim ver a princesa...

_ A princesa! – exclamou Kkortos – Interessante, mas porque veio sozinha? A trilha até a Princesa é perigosa, perigosa! Por que veio sozinha?

_ Não me deixariam vir, e não me trariam, e não posso esperar até o solstício de verão.

_ Oh, não, não pode, não pode – concordou Kkortos, fazendo gestos de que compreendia – O vale inteiro não pode esperar até o Solstício, não pode.

_ Oh não, claro que não! – riu outro – Não pode mais!

E todos riram e caíram no chão, e se fundiram à grama e reapareceram mais próximos.

_ Esquece a princesa, vem com a gente! – exclamou o maior dos cinco, puxando a manga de seu vestido – Vai ser divertido!

_ Vem, vem – outro puxava-a para o outro lado – Vem, menina, vem!

_ Não machuquem Agathugata, não, não! – Kkortos gritava, fazendo pose de herói, mas então todos caíam no chão, rolando e rindo, fundindo-se à vegetação e reaparecendo.

Desesperada, preocupada com a noite que vinha e com a verdadeira intenção dos seres-grama, ela atritou com força os gravetos secos. Não entendia o humor deles, e tinha medo de que a raptassem. Kkortos enfim entendeu o que ela fazia.

_ Oh, não, ora vejam! Pare, Agathugata, pare! – e correu ameaçador para cima da menina.

Uma fagulha, e já era sem tempo: o fogo pegou. Thuga ergueu a tocha à frente e Kkortos por muito pouco não se queimou. Os demais pararam de rir.

_ Fogo não, fogo não! Kkortos não teme os ventos, não os furacões, mas fogo não!

_ Saiam do meu caminho, vocês, saiam! Não gostei de vocês, mesmo, não ligo se se queimarem ou não. Até as árvores foram mais simpáticas. Saiam!

Todos se fundiram com o mato e se foram, sobrando apenas Kkortos. Ele olhou nervoso para a menina, o fogo brilhando em seus olhos verdes.

_ Pode ir, pode ir menina. Não quis brincar conosco, pode ir. Os ladrões te esperam, te esperam, oh sim! – e se foi.

Thuga se ajoelhou e achou que fosse chorar. Essa foi por muito pouco. Tinha que continuar a andar, não podia parar agora. A luz do sol já deixara o interior do vale, mas faltava ainda muito para a noite. Sentiu-se uma burra por não ter lembrado da tocha antes. Mas agora não esqueceria de nada. Entraria no território dos Ladrões de Ar, então amarrou o pano tampando o rosto. Ergueu a tocha e o facão, bebeu o resto de suco que tinha e foi em frente.

VI

Andava há algum tempo. Andava não, corria. Morria de medo da noite a surpreender no território dos ladrões. Por duas vezes quase perdeu a trilha, que agora era uma trilha fraca, escondida entre arbustos escuros. Até o chão era mais escuro. E o sol descia.

Tinha que correr. Perdeu a conta de quantas vezes tropeçou, e sua roupa, mesmo resistente, não suportava, estava rasgada e suja. Mas custasse o que custasse, não tirava o lenço do rosto.

Faltava ainda para o sol se pôr, mas o interior da floresta já estava escuro. Até as cigarras já cantavam! Mesmo sua lamporquídea se abriu e começou a emitir luz. Estava escuro, e Thuga sentia muito medo. Qualquer barulho, o vento nas árvores ou o pio de uma coruja-macaco a fazia se sobressaltar, e correr muito antes de parar para tomar fôlego. E escurecia.

No alto das árvores, um vulto acordava. Piscou duas vezes os olhos brilhantes, duas estrelas no escuro, e sem nariz, sentiu o cheiro de medo. Cheiro de ar, ar dos vivos. Pulou de sua alta árvore, e começou a farejar. Adorava a caçada, o terror. Não tinha pressa, estava em casa. Alcançaria a presa. Mas outro vulto acordou, e ambos trocaram olhares nervosos. O prêmio ao melhor.


Thuga corria desesperada. Já não via trilha alguma, apenas corria, para cima, para longe daquela floresta escura. Sabia que o caminho era subindo sempre, que era ali que a princesa estava. Se a encontrasse, pediria para que nada acontecesse com ela. Estava morrendo de medo. Se tivesse olhado uma vez para traz, ou se prestasse mais atenção, ouviria os passos rápidos que iam atrás dela. O caçador a encontrara.

Agora ela viu a luz, viu o fim da floresta sombria. Lá fora já era noite, mas mesmo a noite era mais clara do que as sombras daquelas árvores. A luz, fora dali, longe do medo. A luz!

Ele caiu sobre ela tão rápido que ela não entendeu o que lhe ocorrera. Algo lhe segurava. Algo. Tentou correr e se soltar com todas as forças, mas garras negras a mantinham no chão, e ela chutava, esperneava. A espada de Filo na mão imobilizada, inútil. E ele permitiu que ela o olhasse. Ela viu. Um vulto com rosto humano, mas sem rosto, apenas os olhos brilhantes, e o cabelo de fumaça que parecia sufocá-la, mesmo com o pano protegendo-lhe o rosto. Era enorme, maior do que o maior dos homens, com garras tão grandes quanto ela própria e pele da cor das sombras. Ele a imobilizou no chão, e então de seu rosto surgiu uma boca em fenda vertical, vermelha. Inspirou. Ela sentiu a pressão do ar a sua volta sendo sugado para dentro daqueles pulmões de sombra, mas o tecido em seu rosto a protegia. Ele tentou duas outras vezes, sem nada conseguir, e só então pareceu perceber o pano sobre o rosto dela. Moveu as garras para tirá-lo, mas parou. Ele ouvira alguma coisa vindo.

Thuga sentiu um alívio tremendo quando o corpo enorme do ladrão de ar foi arremessado para lado. Levantou-se rápido, puxou a espada de Filo, mas sua tocha estava fora do alcance. Correu. Correu e só então olhou para trás.

Dois vultos negros lutavam, batalhavam pelo ar da pequena. E veio outro, mas os dois primeiros o impediram, e começaram a lutar com fúria. Foi a luta dos três que permitiu à menina chegar até o santuário da Princesa.

Thuga estava suja, maltrapilha, sangrando e cansada, mas com o pano ainda sobre o rosto, o pano salvador. Caiu de joelhos diante do santuário. Ali estava ele, as três árvores de bronze iluminadas pela luz da lua, as flores nascendo das pedras e da grama, e no centro de tudo, no centro do triângulo de pedra, a cúpula de vidro. Mas algo estava errado. A cúpula estava partida.

E vazia.

VII

Havia uma razão para Melesio nunca ter visitado a princesa. A história verdadeira não era tão bonita quanto a que era contada pelo povo. A pobre menina nunca soube que era uma princesa, vivera sob proteção, distante do pai, até cair vítima da maldição. Um ano depois do sepultamento de sua filha, o Rei morreu de desgosto. Seu reino se despedaçou em milhares, houve guerras, e até que a paz fosse novamente alcançada quase uma década havia se passado. Huali, o herói, viveu bem apenas por um ano, acabando por sucumbir a uma febre comum, sem resistência, sem luta. Sem glória. Dizem que ele se entregou nos braços da morte, pois não suportou o amor que nunca poderia ser correspondido. Ninguém pode dizer com certeza.

Na verdade, uma pessoa podia, sim. Quase ninguém se lembra que Huali tinha um irmão caçula, apenas uma criança quando tudo isso ocorreu. Um garotinho de olhos escuros e vivos, que se chamava Melome, mas todos chamavam de Mel. Ele sim, ainda se lembra da tristeza do irmão, outrora um grande herói, de repente apenas um camponês triste, que toda semana ia ao topo da montanha para depositar flores para a princesa da cúpula de vidro. Mel sabia que devia gratidão à princesa, porque ela protegia o vale, e sentia simpatia pela garota aprisionada. Mas não agüentava ver seu irmão naquele estado. Quando Huali faleceu, sua família lhe deixou aos cuidados da Casa dos Mais Velhos, e o pequeno Melome jurou pelo Vento Sul que nunca subiria até a cúpula de vidro. Iniciou-se no caminho azul da feitiçaria, a casta de feiticeiros com o maior poder de proteção. Ajudaria a proteger o vale que seu irmão criou, o vale de sua família. Quando se tornou um mestre feiticeiro, mudou seu nome para Melesio, o Atencioso.

E tudo isso foi há muito, muito tempo; os feiticeiros são abençoados com uma vida longa. Essa parte da história se perdeu das memórias das pessoas comuns, e os feiticeiros pouco fizeram para mantê-la. Muito mais de cem verões se passaram, e Mel desaprendeu a contar sua idade. Porém, sua promessa de nunca subir até a cúpula ainda era firme como no dia que chorou a morte de Huali. Iria quebrá-la pela primeira vez essa noite.

O feiticeiro corria apressado, carregando Filo no colo. Estava velho, mas sua magia lhe dava o vigor de um animal selvagem. Com uma mão abraçava o menino, com a outra gesticulava com vigor para o caminho à frente. Os galhos, as folhas, as raízes e os troncos se moviam para deixá-lo passar, abriam caminho ante a vontade poderosa do feiticeiro azul. O sol já havia se posto, mas ele tinha os olhos treinados para o escuro. Galgava os barrancos com velocidade, já contornara a grande pedra da encosta e atravessara o Grande Rio dos homens-besouro. Agora, acabava de deixar o bosque de pedra, nervoso com o tempo precioso que perdera ali. Ele não dobrava a pedra, as árvores-fada não se moviam com sua vontade, apenas a madeira, então teve que se desviar e diminuir muito seu passo veloz, desperdiçando tempo. Os homens-grama não o incomodaram, mas o seguiram de longe, curiosos com o desfecho do pequeno drama a que assistiam.

Fora Filo que se impacientou com a demora de Thuga. Ela disse que voltaria para o jantar, mas o sol se punha e nem sinal da amiga. Preocupado, acabou contando aos pais onde ela tinha ido, e os camponeses correram para pedir ajuda ao amigo feiticeiro. A Casa dos Mais Velhos era longe, e Therão usou toda sua velocidade de caçador para alcançá-la rápido. Quando encontrou Melesio, cuspiu as informações com pressa:

_ Agathugata... a menina Thuga subiu a montanha sozinha! Os ladrões de ar! Pelos Ventos, Mel!

_ Agathugata?!

O feiticeiro sobressaltou-se tanto que assustou o caçador, e partiu sem nada explicar. Ao passar pela casa-árvore de Therão, Filo pulou sobre Melesio implorando para levá-lo com ele. Sem tempo, ele carregou o menino floresta acima.

VIII

Os três ladrões de ar lutavam ferozmente entre si, e já um quarto surgia na orla da floresta. O vento do topo da montanha estava frio, mas graças ao Vento Sul a lua iluminava bem. Ainda caída no chão, Thuga ergueu assustada a espada de Filo em direção às criaturas. Onde estava a princesa? Onde estava? Que faria agora? Sua esperança era pedir para ela desesperadamente por ajuda, mas agora estava perdida, não sabia o que fazer. Um quarto ladrão de ar surgiu, e então os três primeiros pararam de lutar. Voltavam-se para a pequena humana, indefesa a poucos metros. Alguns estavam feridos, sangravam fumaça, arfavam, mas não deixariam que os demais ganhassem o prêmio.

Thuga deu um grito. Todas as criaturas se moveram juntas para frente, para ela, mas deram apenas cinco passos e pararam sobressaltados. Havia alguma coisa atrás da menina.

Ela sentiu a hesitação das criaturas, e se voltou instintivamente para trás. Do centro do triângulo de pedra, cercado pelas três árvores de bronze, e um pouco à frente da cúpula partida, ergueu-se alguma coisa. Nascia do chão como nascem as neblinas, mas seu corpo reluzia a luz da lua, um brilho forte, vítreo. Ergueu-se alto e tomou forma: um golem de vidro. O guardião do santuário. Duas vezes maior do que os vultos escuros, com dois poderosos braços e duas pernas largas de vidro brilhante.

Os ladrões de ar esperaram pelo movimento do guardião. Apressadamente, Thuga iniciou a canção secreta:

_ Vítreo vidro que vi
Vívido é o viço daqui!
Do verde vale que vim...
...mas ele não a deixou terminar. O golem desceu a mão pesada sobre seu corpo.

Um estrondo do chão sendo esmagado ensurdeceu Thuga por um breve instante. Rolara para o lado no último momento, salvando-se. As flores se ergueram com o impacto e o tremor de terra jogou-a para o lado. O lenço de seu rosto se desprendeu e se perdeu em meio às flores. A canção! Ela não funcionou, o golem nem sequer deixou terminá-la! Mais um inimigo, mais um – a menina estava perdida. Abraçou a si mesma, caída, desesperada, e seus braços sentiram o espelhinho de prata do pai, sob o busto.

O pai.

Ainda tinha que encontrá-lo; nunca ter medo, ele dizia. Nunca.

Arrastou-se rápido para frente, escapando de outro golpe do golem. Ergueu-se, desafiadoramente, apontando a espada de Filo. Para sua sorte os ladrões de ar apenas observavam, não desejavam enfrentar o guardião, e aguardavam. Expulsando todo o medo com as lágrimas, Thuga encarou o inimigo de vidro.

Mas ele parou.

Ela ofegava, com olhos marejados, com a lâmina do facão em riste, determinada a lutar. O golem ainda não se movia. Aproveitando esse momento de inatividade, um dos vultos negros circulou o guardião, veloz como uma ventania, mirando Thuga. Roubaria a presa antes de todos. Sairia vitorioso!... E esses foram seus últimos pensamentos. O golem agiu rápido, tão veloz quanto o próprio ladrão de ar, esmagando-o contra o chão cheio de flores. Seu corpo tornou-se sombra e perdeu a vida.

O guardião deu as cotas para Thuga e começou a atacar as criaturas escuras. A menina não sabia o que fazer, nem o motivo que lhe dera o novo aliado. Estaria salva?

Tinham sido pegos despreparados, mas passaram a lutar com fúria. Outros chegaram. Eram muitos, eram tantos, que logo o corpo do golem se partiu, sua perna rachou e caiu sobre si mesmo. Ainda deu mais um golpe, antes de ficar finalmente inerte.

Voaram todos para cima de Thuga, feridos, e por isso mesmo mais famintos. O primeiro que a alcançou a arremessou para trás, e ela aterrissou em cima da cúpula rachada. As pontas do vidro perfuraram suas costas fazendo o sangue cair sobre o triângulo de pedra. Thuga desfaleceu.

IX

Os ladrões de ar!

Melesio e Filo haviam alcançado o topo da montanha, e agora o menino olhava assustado os vultos escuros sob a luz da lua. Havia pelo menos oito deles, e brigavam entre si para alcançar o centro das árvores de cobre. O feiticeiro viu os restos do golem de vidro, viu o sangue-fumaça das feridas das criaturas, e viu a menina dependurada nas estacas de vidro. Rasgou um pedaço de sua manga, protegeu a boca de Filo e depois a própria. Colocou-o no chão.

_ Encontre abrigo, Filo. Melesio vai lutar.

Nem tempo de Filo dar um passo, o feiticeiro ergueu os braços e as flores e grama elevaram-se até dois metros e desceram sobre as criaturas, como uma onda. Os primeiros desapareceram sob o volume de plantas, mas os demais saltaram para longe do alcance do novo inimigo. Ele entoou uma canção de guerra e ergueu mais uma vez os braços, acima da cabeça, e as raízes das plantas subiram como estacas pontiagudas, perfurando mais alguns.

As criaturas agora revidariam. Saltaram por sobre aquele mar de flores e aterrissaram bem próximo ao mago. Ele entoou uma nota grave e a água do ar congelou em suas mãos, criando uma lança de gelo. Atacou em círculo, mantendo as feras longe, enquanto fazia mais e mais plantas tentarem atingi-los.

Filo pulara para dentro de um buraco. Ouviu o estrondo da canção mágica de Melésio, e subiu a cabeça para observar a luta. Viu que o jardim do santuário havia se tornado um mar revolto, que se erguia em ondas de plantas e tentava engolir os vultos escuros. Mas o próprio feiticeiro sangrava. Olhou então para a cúpula de vidro, que, pelos ventos, estava partida! A princesa estava dependurada nas estacas de vidro, inerte, e também sangrava. Mas, não era a princesa, era Thuga! Sem pensar no que fazia, Filo correu até a amiga.

Três ou quatro ladrões de ar jaziam presos sob as vinhas, dois haviam sido destruídos, e o restante fugiu. Só restou um, o maior de todos, e ele encarava o mago. O feiticeiro sangrava copiosamente, empunhando com fúria sua lança de gelo para a criatura, que também tinha feridas por todo o corpo. Seu sangue-fumaça esvaía-se, aumentando sua silhueta. Ambos não se moviam, estudavam-se, o primeiro que fraquejasse cairia. A criatura já não agüentaria muito tempo, e o feiticeiro guardava as energias para manter os demais presos; desfaleceria se compusesse outro encantamento. Foi nesse momento que Filo deixou seu esconderijo.

Os dois olharam rápido para o menino, e a criatura saltou. Não ganharia muito se enfrentasse o feiticeiro, a menina estava longe para alcançar num pulo, mas o garoto, este sim estava ao alcance. Partiria com ele, seria seu troféu pela luta, sua presa. Aterrissou ao seu lado, e com uma das garras abraçou seu corpo.

Melesio tentou correr, mas cambaleou e caiu com um joelho no chão. A grama estremeceu, quase libertando os demais. Não, se ele tentasse correr estariam todos perdidos. Arremessou a lança de gelo contra o vulto, mas ele se desviou com facilidade. Se tivesse boca teria sorrido.

Filo gritava, esperneava, mas era impossível se soltar daquela garra negra. A criatura estava faminta, desistiu de fugir para roubar o ar do menino ali mesmo. Com a outra garra, arrancou a tira de pano do rosto do garoto. Filo sentiu o ar faltar.

_ TIRA AS MÃOS DO MEU AMIGO! 
A realidade vacilou. Uma forte corrente de vento começou a arrastar tudo, um vento poderoso, ameaçando lançar a criatura no abismo da montanha. O vento vinha da menina, vinha de Thuga.

Ela se erguia acima das cabeças de todos, seus olhos brilhavam como lamporquídeas no escuro, e do sangue de suas costas brotavam vinhas floridas, que a seguravam no ar. A criatura negra abriu a boca em fenda e rugiu para ela. As vinhas de flores enroscaram-se no facão que ela ainda segurava, e numa onda muito maior do que a de Melesio, precipitaram-se sobre o ladrão de ar, cravando a espada de Filo no peito do monstro. Ele urrou outra vez, antes de seu corpo ser erguido do chão e se esvair em sombras. Outro ramo de vinhas aparou a queda do menino, e deitou-o no chão.

O vento não cessou. Melesio teve que se segurar com força no chão para não ser arrastado, e isso lhe custou as últimas forças: suas vinhas liberaram as criaturas. Mas elas não atacaram, não, fugiram para as sombras de sua floresta, temendo a menina de olhos de fogo.

O vento amenizou, mas Thuga começou a gritar para o feiticeiro:

_ Onde está a princesa? Onde está ela! Filo quase morreu porque eu quis vê-la, então onde ela está?!

As vinhas agitavam-se, retorciam-se de ódio. A garota parecia finalmente entender, pensou Melesio, e essa seria a sua pior experiência.

_ Onde ela está? – bradou outra vez, e o vento recomeçou forte. Filo estava desacordado e as vinhas já não o seguravam; ele podia ser arremessado ao abismo. Melesio tinha que acelerar as coisas.

_ Onde está quem, Thuga? – precisava gritar para se fazer ouvir – Quem você procura, menina? Ainda não entendeu?

_ Não! Não é verdade! Onde está meu pai? Onde está!

_ Seu pai morreu há mais de cento e cinqüenta anos, menina. Eu o conheci, era um rei bom que não agüentou a perda da filha.

_ Não... – o vento finalmente enfraqueceu, até parar. Havia lágrimas nos olhos da menina – Não... Meu pai!

_ Você é a princesa, menina, a princesa que por tantos anos protegeu nosso vale!

As vinhas a desceram e seus olhos se apagaram. Ela ficou de joelhos, chorando com as mãos entre o rosto. Melesio se aproximou.

_ Eu nunca subi a montanha, pequena, nunca vi seu rosto; não podia te reconhecer. A família de Filo também nunca subiu, e Filo o fez quando era muito pequeno para se lembrar direito. Eu só entendi quando Therão me disse seu verdadeiro nome: Agathugata, a Princesa do Vale!

A menina nada mais dizia, apenas chorava. O feiticeiro a abraçou. Sabia que seria traumático.

Filo acordara, e se aproximou dos dois. Havia ouvido a conversa, mas não sabia o que dizer. Sua amiga não era sua amiga, era a princesa de seus sonhos. A princesa. Abriu a boca, mas nenhum som saiu.

_ Está tudo bem, criança, está tudo bem – disse Melesio para a menina – É preciso tempo para você entender. Então a maldição do feiticeiro da praga não foi tão poderosa assim, depois de duzentos anos você finalmente acordou. Você deve ter andado, em sonhos, ainda dormindo, até cair perto de onde Therão te encontrou. Entenda, a filha do rei, digo, você, nunca soube que era uma princesa. Não é incomum os reis mandarem seus filhos para serem criados em segredo, temendo por sua segurança. Seu pai queria protegê-la. Estava consciente do perigo que você corria, por isso lhe mandou para morar com seu tio. A região onde vocês viviam era protegida magicamente por uma dúzia de feiticeiros azuis. A maldição só surtiu efeito quando você fugiu de casa... Eu sinto muito, pequena.

As lágrimas já paravam, mas Thuga não tirava o rosto do peito do velho. Era agora apenas uma menina indefesa. Queria voltar pra casa, para o tio, para o pai. Mas sua casa já secara há muito e muito tempo.

_ Filo me contou sobre a canção. Era um embuste, claro, criado para ladrões... O guardião deve tê-la atacado, não é pequena? Eu sinto muito – a menina soluçava – Não, não fique triste, Thuga, fique orgulhosa. Foi você quem salvou Filo. Foi você quem fez aquela onda de flores. Foi você, menina, não eu.

_ M-mas, como? – ela conseguiu dizer.

_ As vinhas que te ergueram são suas asas, princesa. Suas novas asas. Veja que belas asas, asas feitas de flores! Os heróis nascem das vontades mais poderosas, e a sua, pra salvar Filo, germinou hoje. Os Deuses-Ventos te abençoaram com essas asas, princesa. Você é agora uma Heroína. A Heroína do Vale.

E Thuga não tirava a cabeça do peito de Melesio.

X

Filo correu para ajudar o pai a trazer a madeira-de-fada para dentro de casa. Era alto inverno, a Temporada dos Furacões começaria ao cair da noite.

Melesio estava sentado à mesa, bebericando seu suco de glipoma. O menino, agora um rapaz de dezesseis verões de idade, aproximou-se do feiticeiro. Mel estava cego e muito cansado, mas ainda tinha alguma magia. Sentiu o garoto.

_ Diga, Filo, que te inquietas tanto?

_ Mel – começou ele, hesitante – porque ela partiu?

O velho feiticeiro descansou o copo sobre a mesa de madeira. Olhou sem ver para a janela redonda, ainda aberta para o dia que findava. Estava velho...

_ Filo, você tem que entender que foi um choque para ela. Um grande e doloroso choque. Todos os amigos, parentes, tudo o que conhecia agora já passou.

_ Eu sei, mas a gente era amigo! Ela podia muito bem ficar com a gente.

_ Ela tinha um sonho, lembra? Mas a vida matou esse sonho.

O rapaz se sentou.

_ Nem se ela visitasse o Outro Mundo teria chance de encontrar o pai lá. O corpo de sombra dele já deve ter partido há muito tempo.

_ Mas então, para onde ela foi? Vocês nunca me contaram.

O feiticeiro sorriu, contente que ainda houvesse no mundo pessoas para sonhar assim. E para lutar por seus sonhos.

_ Você não entenderia na época. Ela foi em busca da memória dele, Filo, da memória do pai. Ela quer descobrir onde fica a entrada dos lendários Salões de Aulestuline, a filha do Tempo, onde estão escritas todas as memórias de todos os seres de todo o mundo, que vivem e que viveram. Nem que tenha que rodar o mundo para descobrir, nem que tenha que pedir aos Quatro Deuses Ventos, ela vai procurá-la. Esse é o sonho dela agora. E isso, veja bem, é só uma lenda, meu filho, só uma lenda. Realmente – ele parou, antes de concluir – somos todos feitos de sonhos.

Filo concordou, olhando para o facão trincado, exposto no meio da parede da sala como um troféu. Ele ainda se tornaria o herói que sempre sonhou ser. E ainda ouviria muito falar de Thuga das Asas de Flor, sua princesa, sua heroína, mas acima de tudo, sua amiga.

E no ponto mais alto do vale, sobre os cacos da antiga cúpula de vidro, flutuava um espelhinho de prata, o guardião de todo vale contra a fúria dos ventos que chegavam.

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