segunda-feira, 22 de março de 2010

[Conto] Sempre noite

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Foi tudo culpa da internet.

Ou seria culpa dos próprios homens, que tornam em armas contra si mesmos tudo o que tocam? Bem, já não importa mais.

Demorou algumas décadas, mas os sacerdotes do Culto da Estrela Escura finalmente reuniram, após considerável esforço, os sete artefatos e meio da Anti-luz. Claro que a internet foi uma ferramenta maravilhosa. O culto existia desde a dinastia Maurya na Índia, quando um asura escuro sussurrou os escuros preceitos para o sábio Shyamal, mas só reunira quatro dos artefatos nos seus dois milênios de existência. Mas veio a internet, e o culto pôde se expandir por quase todo o planeta, e em menos de vinte anos os últimos instrumentos foram encontrados. Talvez por isso, nem o homem nem os deuses puderam impedir a desgraça.

A proposta de Shyamal era audaciosa. Uma maneira de se libertar do ciclo da vida, um caminho alternativo que fugia das grandes provações de cada encarnação e atingia a iluminação facilmente. E parecia simples: bastava roubar a luz de todos os outros. Para tanto, proferia o Sábio, era preciso a união dos Artefatos da Anti-luz, cuja localização estava cifrada em um poema cantado para o sábio num sonho de uma noite sem lua.

O culto nunca foi muito popular, não até este século. Nunca passara das duas centenas de cultistas, que organizavam seus estranhos rituais nas sombras da sociedade, mas esse número saltou para os muitos milhares na era da informação. Quem não queria salvação fácil? A muitas mãos, o poema de Shyamal pôde ser mais rapidamente decifrado e a busca finalmente pôde chegar a termo. Num ano sem graça, no meio de um outono cinzento, encontraram o penúltimo artefato, no México. Uma faca de obsidiana que, segundo Shyamal, foi banhada doze vezes no sangue de Tezcatlipoca, quando este deixou de ser o sol do mundo. A descoberta pôs todos os cultistas em polvorosa, ansiando pela tão esperada libertação, o que fez com que apenas dois meses depois encontrassem o último, o meio artefato: um cajado was partido, enterrado sob as dunas escaldantes há 100 quilômetros do vale do Nilo, que, dizia-se, pertencera ao próprio Seth.

O mundo não estava preparado para o que viria. No dia da união dos lendários instrumentos, numa remota província do interior da Índia, o Sol se pôs como durante toda a existência havia feito, mas não levantou mais. E o mundo apagou com ele.

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(em algum lugar do Brasil, três ou quatro meses depois)

_ Todos nós fomos avisados – dizia a velha, sentada nas ruínas do que fora uma casa, ao redor de uma fogueira. Alguns dos presentes lhe davam ouvidos, outros sequer olhavam em seu rosto. Todos a odiavam – Fomos avisados sobre o dia da união. Nesse dia, o dia em que seriam reunidos todos os sete artefatos e meio, deveríamos fazer o que nos foi ensinado desde que entramos para o culto: deveríamos arrancar a nossa própria vida. Assim têm sido, desde os primeiros cultistas. Todos nós, no final, deveríamos arrancar o próprio sangue, para acorrentarmos nossa alma a este mundo e não reencarnar. Então, outro cultista receberia essa alma, carregando-a como parte de si. Quando este também se suicidasse, passaria o fardo para o seguinte, e assim em diante. Os sacerdotes mais graduados tinham dezenas de almas acorrentadas às suas... – a velha devaneou, seu olhar se perdendo no breu atrás da janela, passeando pelas sombras da Sempre Noite – Diziam que eles podiam se aconselhar com os cultistas do passado, para que levassem a tradição a bom termo, para a salvação de todos. Para a nossa salvação, devo corrigir. Foi nossa culpa, sim, nossa culpa. Nosso ritual roubou a Luz!

Ela baixou o rosto entre as mãos, chorando amargamente. Ninguém ousou consolá-la. Continuaram ali, olhando-a ou não, esperando que terminasse de contar o flagelo do mundo.

_ Foi nossa culpa – continuou – Onde estão os outros cultistas, vocês perguntam. Eu sou a última, os rumores estão certos, sou a última. Não tive coragem de realizar o ritual final, de sacrificar minha vida. As almas que eu mesma carrego gritaram de horror no momento em que desviei o punhal de meu peito, porque sabiam, nunca mais seriam libertas, e esperaram tantos e tantos decênios para nada. Eu ouvi. Ouvi as muitas maldições que proferiram contra minha alma, senti o ódio que me dirigiram, o ódio por lhes roubar o sonho final, o sonho da iluminação. Mereci cada palavra. Ainda agora ouço suas maldições e seus lamentos, chorando sua salvação perdida e prometendo-me mil torturas quando minha hora chegar. Sou amaldiçoada por eles e por vocês. Quando eu terminar essa história, façam o que vieram fazer, não os culpo, nem os impeço. Apenas lhes peço que me esperem terminar.

“No dia da união, todos elevaram o punhal contra o próprio peito, assim devia ser, no momento em que o sol se pôs. Ouvi o grito de morte de dez colegas, e subitamente o medo congelou minha mente e imobilizou minha mão. Por isso eu fiquei para trás. Mais tarde, não encontrei os corpos de nenhum deles. Não faço idéia de onde estejam, nem se as palavras do Sábio eram verdadeiras, ou se eram apenas uma armadilha terrível cantada por um demônio. Sim, isso explica o sumiço de muitos de seus amigos, seus pais, seus irmãos. Aqueles que desapareceram no último dia do mundo, os quais nunca mais vocês viram: eram todos cultistas, todos seus algozes. Dizem que as trevas os engoliram. Eu mesma não sei.

“Muitos outros caíram no Sono, mas estes não eram do culto. Não sei por que razão tantas e tantas pessoas nunca mais acordaram. Descobri mais tarde que assim foi por toda a cidade. Talvez por todo o mundo...

“Eu saíra de casa naquele dia, disse à minha mãe que dormiria na casa de uma amiga, e fui ao templo. Quando a Sempre Noite desceu, eu tinha apenas vinte e um anos. Vinte e um anos – lágrimas escorreram pelo rosto da velha – Mas o ódio das almas que carrego esbranquiçou meus cabelos, enrugou minha pele e enfraqueceu meus ossos. Eles me querem. Assim como vocês, eles me querem.

“Isso foi há muito tempo, perdi a conta dos dias desde que o dia parou de nascer. Vocês se lembram, não? – na platéia, até agora impassível, uma mulher arremessou raivosa uma pedra contra seu rosto. A velha caiu com um gemido abafado, mas se levantou devagar, com um filete de sangue brotando da testa. Os outros nada fizeram. Desejavam matá-la, é verdade, mas desejavam antes ouvi-la – Vocês se lembram, claro – tentou sorrir, mas sentiu o ódio daqueles olhos iluminados pelo fogo e o riso morreu nas sombras – O sol se foi e levou consigo toda a luz. No começo, achei que fosse só ali no templo, só ali onde me escondi quando minha juventude foi roubada, mas com o tempo percebi, vocês também perceberam, a luz sumiu de todos os lugares. Nenhuma lâmpada acesa, poste, televisão, nada. No começo tive medo, assim como vocês. Voltei pra casa, desesperada, mas encontrei meus pais dormindo o Sono profundo. Nunca consegui acordá-los. Fui burra, muito burra e egoísta ao entrar para o culto...

“Então fugi. Fugi para longe e procurei abrigo, quando o céu lançou a grande chuva do início. Muitos de vocês imaginavam que era apenas um blecaute, e o que eu daria para que fosse! Um blecaute, como outro qualquer, e então o sol nasceria, e tudo não passaria de um devaneio.

“Mas com o passar das horas o pânico veio, como eu sabia que viria. O dia não nasceu, milhares sequer acordaram e, ilhados pela falta de energia e qualquer tipo de comunicação, afundamos no caos. A chuva cessou, e os saques começaram. A violência. Roubei o que pude de um supermercado velho e me escondi em um prédio abandonado. Por Deus, nunca me vi tão só! Aqueles primeiros dias, que eu ainda contava até que meu relógio parasse, foram terríveis.

“As plantas secaram. Agora até a chuva nos abandonou. Não me lembro de ver nuvens no céu há algum tempo. Vocês viram alguma?... Não, não adianta me perguntar sobre o que virá depois, eu não sei. O culto celebrava o momento em que seríamos libertos, nunca soubemos o que seria do que ficasse para trás. Os hinos falavam do roubo da luz, eu não imaginava que seria tão literal. Vocês com certeza já repararam. Não? Olhem para o céu da Sempre Noite – alguns arriscaram olhar para cima, outros mantiveram os olhos fixos nela. A multidão lotava desde a região ao redor da fogueira até o quintal, e talvez até as ruas mais além, o escuro não permitia dizer – A lua se foi há algum tempo, e cada vez mais as estrelas se apagam. Logo não haverá luz de espécie alguma, apenas o fogo que teima em iluminar essa escuridão dos infernos. E quem sabe até quando? Meus mantimentos estão acabando, não poderemos viver para sempre de biscoitos e cereais vencidos, agora que as plantas estão secas. Nosso culto levou a luz do mundo, e aos poucos está levando o próprio mundo!

_ E se... – arriscou um jovem, de cabelos longos e olhar esperançoso, o primeiro a se manifestar desde que a velha começara a história. Os olhos dos demais se concentraram nele – E se separássemos os tais artefatos, ou os destruíssemos, não haveria esperança?

A velha baixou a cabeça. Também já pensara nisso.

_ Os artefatos foram unidos na Índia, numa gruta escura, o local onde o Sábio teria recebido os preceitos da religião. Não sei onde fica, as pessoas que o sabem estão mortas, ou ascenderam, quem sabe, e mesmo que eu soubesse, não há meios para chegar lá. E, mesmo que houvesse, mesmo que eu me deparasse com o círculo formado pelos odiosos instrumentos e os destruísse, ainda assim nada garante que a Luz retorne.

_ Podemos tentar! – insistiu ele.

A persistência e teimosia próprias da juventude. Ela também fora jovem, mas sua alma envelheceu junto com seu corpo.

_ Não há tempo, não há... Olhem para o céu! Quantas estrelas vêem? Da última vez que olhei eu podia contá-las. Contar as estrelas! E agora, quantas há? – um burburinho passou pela multidão, alguns olharam para cima temerosos. O jovem estava mudo – Havia um verso... havia um verso no final de um dos poemas do culto – a velha se calou subitamente e pressionou a mão com força nos ouvidos, para abafar as vozes de sua cabeça que gritavam para que se calasse – Havia um verso no final de um dos poemas. Nem os imbecis dos sacerdotes devem tê-lo entendido, é o único verso que fala sobre isso aqui, sobre o que restou, sobre nós. O verso dizia: Então as estrelas, depois o nada. Então as estrelas, depois o nada! Quando a última estrela sumir, vai ser o fim, o fim deste mundo! Nossas almas apagarão, porque o culto roubou toda a esperança de uma pós-vida. Nunca mais encarnaremos, nem chegaremos ao outro lado. Nossas almas acabarão aqui! Aqui, nessa escuridão infernal que...

Uma outra pedra atingiu o rosto da velha. E outra, e então a multidão não mais se conteve, avançou. Paus e pedras contra a pele fina, e o sangue logo brotou, manchando o piso de mármore partido. O fogo dançava iluminando a cena. Ela chorou, mas não disse nada em sua defesa, sequer gritou. Abraçou a morte como dantes não tivera coragem, e entregou sua alma para o julgo daquelas que carregava.

Entre os gritos de fúria da multidão, restaram aqueles que preferiram apenas olhar o céu. A velha tinha razão. Pouquíssimas estrelas, nem mesmo dez, e não havia nuvem alguma. Uma delas então sumiu, faltava pouco. A multidão perseguira a bruxa que dizia ser a culpada pela Sempre Noite em busca de sangue, sangue e explicação, mas não puderam mais conter a ira de suas frustrações. Cada golpe que davam no corpo já sem vida era a vontade furiosa de se livrar daquele peso, o peso que foram obrigados a carregar.

Primeiro os mais jovens, e então toda a multidão se voltou para cima. Outra estrela sumiu. O próprio fogo pareceu perder a intensidade. Mais duas estrelas deram lugar à escuridão. Estava próximo. O que quer que fosse acontecer, estava próximo. Alguns deram as mãos. Outros se abraçaram. Não sabiam se era verdade o que a bruxa disse, mas todos que vieram acreditavam um pouco. Mais três estrelas sumiram, uma depois da outra. O jovem de cabelos longos olhava atento para as duas únicas remanescentes do céu. Uma delas se precipitou, uma estrela cadente, riscando o céu escuro. Faltava uma. Seria ali, naquele momento. O que quer que fosse acontecer, seria agora. Seguraram a respiração. No resto do mundo, outras pessoas faziam o mesmo.

Não houve dor nem efeitos especiais. A estrela sumiu, e junto com ela, a quadragésima segunda versão do universo simplesmente desapareceu.

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Brahma abriu os olhos. Seu dia ainda não findara, mas por alguma razão acordara de seu devaneio, o devaneio que deveria durar toda a jornada. Todos os seus pensamentos sumiram de repente, e mesmo que se esforçasse não conseguia retomá-los, tal quando acordamos e esquecemos o que sonhamos. Esqueceu como eram as nuvens, a luz, as estrelas, as plantas, as pessoas. Tudo se tornou uma lembrança que teimava em se manter esquecida. Piscou os olhos de cada uma de suas cabeças e se remexeu, sem entender. Os outros dois olhavam-no irados.

_ Brahma, ó Brahma, que nasceu da flor de lótus que nasceu de meu umbigo! – bradou um grande homem, muito abaixo dele, por sua vez deitado sobre uma grande serpente – Kali Yuga vivia ainda seus últimos momentos, não era a hora, tu o sabes! Kalki sequer pôde cavalgar sobre o mundo! Não era a hora!

_ Grande Brahma, que houve? – clamou um outro, com o terceiro olho brilhando em sua testa – Sequer pude passar este mundo sob meu julgo, sequer era a hora para tal! De quem é a culpa, se tua, ou se de Vishnu, cuja tarefa foi e sempre será a de manter o funcionamento do mundo?

Brahma nada falou. Observava um asura escuro, escondido nas espumas do mar onde nadava Shesha-naga, a serpente de Vishnu. O asura ria dos três deuses, e se deliciava com as almas dos cultistas que roubara do mundo pensado por Brahma.

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