← Postagem anterior
|
Próxima postagem →
Terceira parte!
O peso da defesa do reino recai sobre os ombros do valoroso Tamdrash, mas a luz tóxica da Goeol-Dûor deixou sua marca sobre o espírito do rei.
Ele precisa provar para si mesmo que é capaz. A segurança de seu reino depende disso.
3.TAMDRASH
Terceira parte!
O peso da defesa do reino recai sobre os ombros do valoroso Tamdrash, mas a luz tóxica da Goeol-Dûor deixou sua marca sobre o espírito do rei.
Ele precisa provar para si mesmo que é capaz. A segurança de seu reino depende disso.
______________________________________________________________________
(do universo de alta magia de Iph'oriam)
– Senhor, a meia-lua está pronta. A parede de escudos do inimigo fez menção de avançar – informou Taurelas Andramm.
A general feérica possuía uma queimadura no lado esquerdo do rosto, que trazia desde aquele dia no ritual e que nunca seria curada. Ficara cega por dois meses com a exposição à luz da Goeol-Dûor, mas o desastre ao menos lhe imbuiu com uma ínfima parte do poder da rainha, e ela lutou com fúria nos meses de luto do rei.
Agora, Tamdrash vestia mais uma vez sua forma humana, um homem alto e esguio de pele escura, mas seus dreadlocks se tornaram grisalhos com o peso da dor e do estresse, e profundas olheiras emolduravam os olhos castanhos, agora avermelhados e tristes. Já não exibiam o brilho que lhes era característico.
O rei de Kriz’Ur estava agora em seu último suspiro, depois que tombara na última investida em que Ashardalon participou. O Rei Vermelho de fato fora enfraquecido pelo longo assalto à Kriz’Ur, que durava já quase três anos, e desde o início daquele ano o dragão vermelho não se aventurara no campo de batalha.
Já se passara sete meses desde a Goeol-Dûor, desde que a alma de Telëne se partiu com o peso do poder que tentou absorver. Desde então, Tamdrash já tentara todas as formas possíveis, mas mesmo que a irmã ainda possuísse todos os três de seus suspiros de vida quando se fora, ele não conseguiu trazê-la de volta.
Tamdrash ergueu para ela um grande mausoléu, onde antes o belo Rinovarzith’anhew se erguia imponente, e todas as noites, em seu castelo inclinado, ele orava pelo espírito da irmã, num luto que o acompanhou na guerra desde então.
Naquele fim de verão as fileiras de Ashardalon finalmente se aproximavam do vale próximo de seu castelo, lideradas por Cotumo, uma elfa sombria famosa na guerra e exímia general.
– Senhor...? – chamou Taurelas.
Tamdrash pigarreou e se empertigou.
– Sim, obrigado, general. Ordene aos demais líderes para se juntarem às suas respectivas fileiras. E quero que a frota de águias-mariposa impeça a qualquer custo uma ofensiva por Faërie dessa vez.
Taurelas aquiesceu e aguardou, mas o rei manteve-se em silêncio.
– Majestade?.. E sobre a nossa ofensiva?
Tamdrash pareceu acordar de um novo devaneio.
– A nossa ofensiva, sim. Vamos manter a estratégia que discutimos com os demais generais. Caso o inimigo rompa a nossa parede de escudos, soe a corneta de investida. Todos os generais da fileira central devem bater em retirada e dar espaço para os cavaleiros investirem. Caso nossa parede resista e o inimigo perca a força, a segunda corneta soará, e a parede de escudos da esquerda deve dar passagem, mas só o suficiente para avançarmos, fechando em seguida atrás de nós. Eu mesmo liderarei os cavaleiros.
– Majestade, eu ainda... Ainda não acredito que seja uma boa estratégia – protestou a feérica, com certa relutância. Faltava a Tamdrash o carisma da rainha, e apesar de um bom governante, sempre fora distante, mesmo de seus conselheiros. Exigia força de vontade se opor e questiona-lo. Tomando ar, continuou – Como eu disse na tenda, Ishkar está entre os atacantes, e ele é habilidoso em camuflar sua presença. O inimigo pode isolar a ofensiva e impedir que mais reforços...
– Eu ouvi seu julgamento, general – cortou o rei, com uma raiva mal disfarçada – E Tamdrash de Kriz’Ur não vai ceder ao inimigo. Mantenha a estratégia conforme foi acordado.
Ela suspirou.
– Sim, senhor, majestade – fez uma vênia e uma continência, se afastando.
Quando a general se afastou, Tamdrash deu um suspiro profundo. Tomou entre as mãos o pingente que trazia no pescoço e fez uma pequena prece. Era uma pedra pequena e transparente, não lapidada, semelhante a uma gema de semprigelo, também fria ao toque. Várias daquelas pedras se tornaram comuns no vale, e algumas delas pulsavam com a energia da antiga rainha. Como o seu pingente.
O povo do vale as chamavas de telëneternesj, pedra-de-Telëne na língua dos dragões. Na noite da Goeol-Dûor, elas choveram por todo o vale, espalhadas após a explosão, alterando profundamente a teia de magia de Kriz’Ur e tornando o véu para Faërie mais tênue do que em qualquer outro lugar. Os que estavam presentes durante o ritual foram atingidos por algumas delas, e os que sobreviveram descobriram que herdaram uma ínfima parte do poder da rainha, como Taurelas confirmara ao recuperar a visão.
As telëneternesji eram tudo o que restou de Telëne neste mundo, partes de seu corpo petrificadas com a energia do seu momento final. Tamdrash a trazia consigo com a mesma reverência com que tratava a irmã, e buscava no cordão a sabedoria que não possuía.
Tomou o pingente e fechou os olhos.
– Eu não sou forte o suficiente, irmã – sussurrou.
Com olhos embargados, guardou o pingente sob a cota de malha, colocou o elmo de ferro negro e semprigelo, e se dirigiu à batalha.
Empurrar, estocar, erguer escudos.
O inferno da guerra começara mais uma vez, e Taurelas Andramm descarregava toda sua ira contra o inimigo.
Estava mais forte, agora. A telëneternesj que a atingira no braço esquerdo e ali se alojara a presenteou com um vigor extraordinário para a sua raça, que lhe garantiu uma grande resistência e muitos feitos em batalha. A maior bênção, porém, foram as visões.
Lampejos de eventos, próximos ou distantes, passaram a visitá-la desde que perdera a visão, naqueles terríveis dois meses após o desastre. As visões podiam ser cenas passadas, do presente ou do futuro, e havia verdades ali nas quais ela aprendeu a confiar.
Foram elas que a ajudaram a virar a batalha aos pés da montanha Orodûr, e que a salvaram da emboscada nas florestas de Cornerwyn, além de inúmeros pequenos êxitos ao longo dos últimos meses.
Mas ela também fora vítima da luz da Goeol-Dûor, e seu espírito perdeu parte de si. Nunca mais a brisa fresca da montanha lhe traria paz, nem o banho nos rios lhe revigorariam o corpo, nem o gosto do vinho lhe seria prazeroso. Se o sol de verão tocava sua pele, parecia-lhe tão distante quanto numa tarde de inverno. Sua existência tornou-se embaçada como a superfície de um escudo velho... Restara-lhe apenas o reflexo distorcido das sensações que um dia sentira. Havia poucos castigos piores para um feérico.
E a segunda corneta soou.
Taurelas mordeu os lábios contrariada, mas ordenou que seus soldados se afastassem, assim como o general à sua direita e à sua esquerda fizeram. A parede de escudos de seu flanco se abriu, e a cavalaria emergiu pela brecha inundando o inimigo como uma onda poderosa do mar.
O rei os liderava, vestindo armadura completa, passando veloz.
Quando ela se voltou para eles, porém, foi dominada por um sentimento terrível que a fez perder o ar. Pela viseira do elmo, ela viu que o rei era seguido não pelos cavaleiros de Kriz’Ur, mas por esqueletos de armadura e armas fendidas, montando cavalos moribundos. Ao se voltar para o rei, aterrorizada, viu que ele cavalgava com o braço em riste, banhado em sangue, com o corpo balançando debilmente. Sobre o peitoral da armadura, uma visão macabra.
O rei estava sem cabeça.
A cena durou uma batida de coração, e quando os gritos do campo de batalha voltaram, já não havia esqueletos nem um rei sem cabeça, e os cavaleiros e o próprio Tamdrash nunca pareceram tão saudáveis.
Ela não teve tempo para pensar nem agir; assim que o último cavaleiro passou por eles, a corneta soou e a parede de escudos se uniu mais uma vez, e o inferno recomeçou.
A frota de cavaleiros varreu o braço daquela ofensiva com facilidade, derrubando os que avançavam e perseguindo os que tentaram fugir.
Mas os cavaleiros avançaram muito e um assalto de aranhas gigantes os enfrentou pela esquerda. A investida de Kriz’Ur fora dispersada, e quando Tamdrash tomou a corneta para ordenar a retirada, uma flecha acertou-o no antebraço, queimando e ardendo como brasa. Os cavaleiros se espalharam e alguns conseguiram ordenar uma investida para defender o rei, mas colunas de fogo negro se ergueram e incineraram a maioria deles.
O cavalo de Tamdrash perdeu o controle e ele saltou antes que tombasse. Com raiva, tentou arrancar a flecha do braço, mas ao tocá-la a mão também queimou.
Havia runas mágicas na haste.
Uma aranha montada se aproximou com sua condutora lançando dardos de ácido contra o rei. Era uma elfa sombria habilidosa, mas Tamdrash defletia os ataques com a espada ou com sua aura. Alguns o atingiram, e logo mais flechas vieram contra ele, vindo de outros cavaleiros, errando ou perfurando sua pele. Ergueu a espada e clamou por seus soldados, mas nenhum conseguiu quebrar o círculo que se fechara sobre ele, e a maioria estava morta.
Furioso, invocou seu poder para assumir sua forma dracônica, mas um aperto lacerante o impediu – as três flechas que lhe acertaram queimaram, e suas runas brilhavam; uma âncora mágica.
Inspirou e rugiu, e com seu urro soprou uma tempestade de gelo que cobriu os inimigos. Algumas aranhas congelaram e deixaram de se mover, alguns cavaleiros conseguiram dissipar o ataque, mas a líder e sua montaria simplesmente ignorou a tempestade, e passou pela nevasca incólume. Usava algum amuleto poderoso.
Tamdrash elevou sua espada e clamou o nome da morte nas três línguas nobres de Faërie, disparando raios vírides em todas as direções.
Dessa vez não houve quem dissipasse seu ataque, e todos os atingidos, montarias e cavaleiros, foram arremessados para trás enquanto suas almas eram despedaçadas. Mas a líder usou sua aranha como proteção, empinando-a para que o monstro recebesse o ataque em seu lugar. Quando a carcaça da aranha tombou para trás a líder saltou da sela e aterrissou atrás da montaria morta, usando-a como barricada enquanto conjurava um feitiço poderoso.
Outros inimigos correram contra o rei, passando pelos oficiais mortos e contornando os corpos gigantescos das aranhas.
Tamdrash não esperou. Concentrou sua aura em seu peito, murmurando o mantra dos gigantes da tempestade dos picos nevados de Kriz’Ur.
E então rugiu.
Rugiu liberando seu poder, e mesmo em forma humana, seu urro explodiu como uma onda de choque, despedaçando chão, carcaças e corpos, arremessando tudo e todos para longe, criando uma clareira de dezenas de passadas de destruição.
Tamdrash estava de pé, ofegante, sozinho no meio do espaço que abrira. Os soldados inimigos fizeram uma pequena formação ao seu redor, mas não ousavam se aproximar mais. A sua corneta fora partida e perdida em meio ao ataque; seus cavaleiros estavam mortos, e atrás de si a grande formação do inimigo o rodeava separando-o de seu próprio exército, que batalhava na parede de escudos.
Estava isolado.
As flechas queimavam, os ataques de ácido o feriram. Gastara parte de sua magia, mas ainda podia segurar os soldados inimigos. Talvez – meneou a cabeça levemente para trás – devesse abrir ele mesmo o caminho de volta.
E então duas presenças se expandiram em sua mente, e ele se voltou alarmado. Uma era Ishkar, vindo da esquerda, abrindo caminho entre a fileira inimiga e mirando-o com seriedade. Mas a outra ele ainda não conhecia... Veio da direita, detrás das carcaças congeladas e destroçadas das aranhas gigantes. Quando se mostrou, ele reconheceu a líder dos montadores de aranha, mas sua presença estava muito mais poderosa do que antes. Provavelmente a havia ocultado no primeiro confronto.
Quando ela tirou o elmo Tamdrash reconheceu a tatuagem em sua testa.
Cotumo Lâmina-de-Ungolth, sacerdotisa da deusa-aranha-demônio. General mor de Ashardalon.
O rei de Kriz’Ur ergueu seu escudo e empunhou sua espada, expandindo sua aura.
Ishkar rugiu e tomou sua forma de dragão verde, imenso, abrindo as asas e eclipsando o campo de batalha. Cotumo empunhou sua espada de lâmina ondulada, avançando devagar, enquanto sussurrava palavras profanas.
Tamdrash pressionou sua espada, receoso. Estava diante de inimigos poderosos.
Pensou uma última vez em Telëne.
Com um grito de guerra, invocou todo o poder do inverno de Kriz’Ur e avançou.
Como uma brisa fria que sopra sem aviso, um terrível pressentimento atingiu Taurelas, fazendo-a se voltar instintivamente para o sul, por sobre o campo de batalha inimigo, recebendo, por conta disso, um golpe de espada através da parede. Com raiva, estocou por cima do escudo, atingindo o inimigo no pescoço e derrubando-o. Outro tomou seu lugar.
E a corneta de retirada soou.
Confusos, os líderes que ainda mantinham a parede hesitaram algumas batidas de coração. A corneta soou mais uma vez, e logo as bandeiras negras se ergueram atrás da meia-lua.
Os generais se entreolharam, desesperados, e os inimigos aproveitaram e reforçaram o ataque.
Taurelas buscou seus sentidos e perdeu a esperança. A presença de Tamdrash desaparecera.
O rei estava morto.
A general feérica possuía uma queimadura no lado esquerdo do rosto, que trazia desde aquele dia no ritual e que nunca seria curada. Ficara cega por dois meses com a exposição à luz da Goeol-Dûor, mas o desastre ao menos lhe imbuiu com uma ínfima parte do poder da rainha, e ela lutou com fúria nos meses de luto do rei.
Agora, Tamdrash vestia mais uma vez sua forma humana, um homem alto e esguio de pele escura, mas seus dreadlocks se tornaram grisalhos com o peso da dor e do estresse, e profundas olheiras emolduravam os olhos castanhos, agora avermelhados e tristes. Já não exibiam o brilho que lhes era característico.
O rei de Kriz’Ur estava agora em seu último suspiro, depois que tombara na última investida em que Ashardalon participou. O Rei Vermelho de fato fora enfraquecido pelo longo assalto à Kriz’Ur, que durava já quase três anos, e desde o início daquele ano o dragão vermelho não se aventurara no campo de batalha.
Já se passara sete meses desde a Goeol-Dûor, desde que a alma de Telëne se partiu com o peso do poder que tentou absorver. Desde então, Tamdrash já tentara todas as formas possíveis, mas mesmo que a irmã ainda possuísse todos os três de seus suspiros de vida quando se fora, ele não conseguiu trazê-la de volta.
Tamdrash ergueu para ela um grande mausoléu, onde antes o belo Rinovarzith’anhew se erguia imponente, e todas as noites, em seu castelo inclinado, ele orava pelo espírito da irmã, num luto que o acompanhou na guerra desde então.
Naquele fim de verão as fileiras de Ashardalon finalmente se aproximavam do vale próximo de seu castelo, lideradas por Cotumo, uma elfa sombria famosa na guerra e exímia general.
– Senhor...? – chamou Taurelas.
Tamdrash pigarreou e se empertigou.
– Sim, obrigado, general. Ordene aos demais líderes para se juntarem às suas respectivas fileiras. E quero que a frota de águias-mariposa impeça a qualquer custo uma ofensiva por Faërie dessa vez.
Taurelas aquiesceu e aguardou, mas o rei manteve-se em silêncio.
– Majestade?.. E sobre a nossa ofensiva?
Tamdrash pareceu acordar de um novo devaneio.
– A nossa ofensiva, sim. Vamos manter a estratégia que discutimos com os demais generais. Caso o inimigo rompa a nossa parede de escudos, soe a corneta de investida. Todos os generais da fileira central devem bater em retirada e dar espaço para os cavaleiros investirem. Caso nossa parede resista e o inimigo perca a força, a segunda corneta soará, e a parede de escudos da esquerda deve dar passagem, mas só o suficiente para avançarmos, fechando em seguida atrás de nós. Eu mesmo liderarei os cavaleiros.
– Majestade, eu ainda... Ainda não acredito que seja uma boa estratégia – protestou a feérica, com certa relutância. Faltava a Tamdrash o carisma da rainha, e apesar de um bom governante, sempre fora distante, mesmo de seus conselheiros. Exigia força de vontade se opor e questiona-lo. Tomando ar, continuou – Como eu disse na tenda, Ishkar está entre os atacantes, e ele é habilidoso em camuflar sua presença. O inimigo pode isolar a ofensiva e impedir que mais reforços...
– Eu ouvi seu julgamento, general – cortou o rei, com uma raiva mal disfarçada – E Tamdrash de Kriz’Ur não vai ceder ao inimigo. Mantenha a estratégia conforme foi acordado.
Ela suspirou.
– Sim, senhor, majestade – fez uma vênia e uma continência, se afastando.
Quando a general se afastou, Tamdrash deu um suspiro profundo. Tomou entre as mãos o pingente que trazia no pescoço e fez uma pequena prece. Era uma pedra pequena e transparente, não lapidada, semelhante a uma gema de semprigelo, também fria ao toque. Várias daquelas pedras se tornaram comuns no vale, e algumas delas pulsavam com a energia da antiga rainha. Como o seu pingente.
O povo do vale as chamavas de telëneternesj, pedra-de-Telëne na língua dos dragões. Na noite da Goeol-Dûor, elas choveram por todo o vale, espalhadas após a explosão, alterando profundamente a teia de magia de Kriz’Ur e tornando o véu para Faërie mais tênue do que em qualquer outro lugar. Os que estavam presentes durante o ritual foram atingidos por algumas delas, e os que sobreviveram descobriram que herdaram uma ínfima parte do poder da rainha, como Taurelas confirmara ao recuperar a visão.
As telëneternesji eram tudo o que restou de Telëne neste mundo, partes de seu corpo petrificadas com a energia do seu momento final. Tamdrash a trazia consigo com a mesma reverência com que tratava a irmã, e buscava no cordão a sabedoria que não possuía.
Tomou o pingente e fechou os olhos.
– Eu não sou forte o suficiente, irmã – sussurrou.
Com olhos embargados, guardou o pingente sob a cota de malha, colocou o elmo de ferro negro e semprigelo, e se dirigiu à batalha.
<< ☾ >>
O inferno da guerra começara mais uma vez, e Taurelas Andramm descarregava toda sua ira contra o inimigo.
Estava mais forte, agora. A telëneternesj que a atingira no braço esquerdo e ali se alojara a presenteou com um vigor extraordinário para a sua raça, que lhe garantiu uma grande resistência e muitos feitos em batalha. A maior bênção, porém, foram as visões.
Lampejos de eventos, próximos ou distantes, passaram a visitá-la desde que perdera a visão, naqueles terríveis dois meses após o desastre. As visões podiam ser cenas passadas, do presente ou do futuro, e havia verdades ali nas quais ela aprendeu a confiar.
Foram elas que a ajudaram a virar a batalha aos pés da montanha Orodûr, e que a salvaram da emboscada nas florestas de Cornerwyn, além de inúmeros pequenos êxitos ao longo dos últimos meses.
Mas ela também fora vítima da luz da Goeol-Dûor, e seu espírito perdeu parte de si. Nunca mais a brisa fresca da montanha lhe traria paz, nem o banho nos rios lhe revigorariam o corpo, nem o gosto do vinho lhe seria prazeroso. Se o sol de verão tocava sua pele, parecia-lhe tão distante quanto numa tarde de inverno. Sua existência tornou-se embaçada como a superfície de um escudo velho... Restara-lhe apenas o reflexo distorcido das sensações que um dia sentira. Havia poucos castigos piores para um feérico.
E a segunda corneta soou.
Taurelas mordeu os lábios contrariada, mas ordenou que seus soldados se afastassem, assim como o general à sua direita e à sua esquerda fizeram. A parede de escudos de seu flanco se abriu, e a cavalaria emergiu pela brecha inundando o inimigo como uma onda poderosa do mar.
O rei os liderava, vestindo armadura completa, passando veloz.
Quando ela se voltou para eles, porém, foi dominada por um sentimento terrível que a fez perder o ar. Pela viseira do elmo, ela viu que o rei era seguido não pelos cavaleiros de Kriz’Ur, mas por esqueletos de armadura e armas fendidas, montando cavalos moribundos. Ao se voltar para o rei, aterrorizada, viu que ele cavalgava com o braço em riste, banhado em sangue, com o corpo balançando debilmente. Sobre o peitoral da armadura, uma visão macabra.
O rei estava sem cabeça.
A cena durou uma batida de coração, e quando os gritos do campo de batalha voltaram, já não havia esqueletos nem um rei sem cabeça, e os cavaleiros e o próprio Tamdrash nunca pareceram tão saudáveis.
Ela não teve tempo para pensar nem agir; assim que o último cavaleiro passou por eles, a corneta soou e a parede de escudos se uniu mais uma vez, e o inferno recomeçou.
<< ☾ >>
Mas os cavaleiros avançaram muito e um assalto de aranhas gigantes os enfrentou pela esquerda. A investida de Kriz’Ur fora dispersada, e quando Tamdrash tomou a corneta para ordenar a retirada, uma flecha acertou-o no antebraço, queimando e ardendo como brasa. Os cavaleiros se espalharam e alguns conseguiram ordenar uma investida para defender o rei, mas colunas de fogo negro se ergueram e incineraram a maioria deles.
O cavalo de Tamdrash perdeu o controle e ele saltou antes que tombasse. Com raiva, tentou arrancar a flecha do braço, mas ao tocá-la a mão também queimou.
Havia runas mágicas na haste.
Uma aranha montada se aproximou com sua condutora lançando dardos de ácido contra o rei. Era uma elfa sombria habilidosa, mas Tamdrash defletia os ataques com a espada ou com sua aura. Alguns o atingiram, e logo mais flechas vieram contra ele, vindo de outros cavaleiros, errando ou perfurando sua pele. Ergueu a espada e clamou por seus soldados, mas nenhum conseguiu quebrar o círculo que se fechara sobre ele, e a maioria estava morta.
Furioso, invocou seu poder para assumir sua forma dracônica, mas um aperto lacerante o impediu – as três flechas que lhe acertaram queimaram, e suas runas brilhavam; uma âncora mágica.
Inspirou e rugiu, e com seu urro soprou uma tempestade de gelo que cobriu os inimigos. Algumas aranhas congelaram e deixaram de se mover, alguns cavaleiros conseguiram dissipar o ataque, mas a líder e sua montaria simplesmente ignorou a tempestade, e passou pela nevasca incólume. Usava algum amuleto poderoso.
Tamdrash elevou sua espada e clamou o nome da morte nas três línguas nobres de Faërie, disparando raios vírides em todas as direções.
Dessa vez não houve quem dissipasse seu ataque, e todos os atingidos, montarias e cavaleiros, foram arremessados para trás enquanto suas almas eram despedaçadas. Mas a líder usou sua aranha como proteção, empinando-a para que o monstro recebesse o ataque em seu lugar. Quando a carcaça da aranha tombou para trás a líder saltou da sela e aterrissou atrás da montaria morta, usando-a como barricada enquanto conjurava um feitiço poderoso.
Outros inimigos correram contra o rei, passando pelos oficiais mortos e contornando os corpos gigantescos das aranhas.
Tamdrash não esperou. Concentrou sua aura em seu peito, murmurando o mantra dos gigantes da tempestade dos picos nevados de Kriz’Ur.
E então rugiu.
Rugiu liberando seu poder, e mesmo em forma humana, seu urro explodiu como uma onda de choque, despedaçando chão, carcaças e corpos, arremessando tudo e todos para longe, criando uma clareira de dezenas de passadas de destruição.
Tamdrash estava de pé, ofegante, sozinho no meio do espaço que abrira. Os soldados inimigos fizeram uma pequena formação ao seu redor, mas não ousavam se aproximar mais. A sua corneta fora partida e perdida em meio ao ataque; seus cavaleiros estavam mortos, e atrás de si a grande formação do inimigo o rodeava separando-o de seu próprio exército, que batalhava na parede de escudos.
Estava isolado.
As flechas queimavam, os ataques de ácido o feriram. Gastara parte de sua magia, mas ainda podia segurar os soldados inimigos. Talvez – meneou a cabeça levemente para trás – devesse abrir ele mesmo o caminho de volta.
E então duas presenças se expandiram em sua mente, e ele se voltou alarmado. Uma era Ishkar, vindo da esquerda, abrindo caminho entre a fileira inimiga e mirando-o com seriedade. Mas a outra ele ainda não conhecia... Veio da direita, detrás das carcaças congeladas e destroçadas das aranhas gigantes. Quando se mostrou, ele reconheceu a líder dos montadores de aranha, mas sua presença estava muito mais poderosa do que antes. Provavelmente a havia ocultado no primeiro confronto.
Quando ela tirou o elmo Tamdrash reconheceu a tatuagem em sua testa.
Cotumo Lâmina-de-Ungolth, sacerdotisa da deusa-aranha-demônio. General mor de Ashardalon.
O rei de Kriz’Ur ergueu seu escudo e empunhou sua espada, expandindo sua aura.
Ishkar rugiu e tomou sua forma de dragão verde, imenso, abrindo as asas e eclipsando o campo de batalha. Cotumo empunhou sua espada de lâmina ondulada, avançando devagar, enquanto sussurrava palavras profanas.
Tamdrash pressionou sua espada, receoso. Estava diante de inimigos poderosos.
Pensou uma última vez em Telëne.
Com um grito de guerra, invocou todo o poder do inverno de Kriz’Ur e avançou.
<< ☾ >>
E a corneta de retirada soou.
Confusos, os líderes que ainda mantinham a parede hesitaram algumas batidas de coração. A corneta soou mais uma vez, e logo as bandeiras negras se ergueram atrás da meia-lua.
Os generais se entreolharam, desesperados, e os inimigos aproveitaram e reforçaram o ataque.
Taurelas buscou seus sentidos e perdeu a esperança. A presença de Tamdrash desaparecera.
O rei estava morto.
______________________________________________________
Arte do capítulo: dragon and army, por Vuk Kostic (Chevsy) (©2015-2016 chevsy).
Website: http://chevsy.deviantart.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário