Opa! Conto curtinho, inspirado no conto Jeane, da amiga, mentora e companheira de caminhada, Rita Maria Felix da Silva.
Espero que gostem /o/
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Quatro Pragas
Ela sobreviveu às fogueiras, quando muitas mulheres, bruxas ou não, gritaram suas agonias aos céus. Viu o ódio e maldade dos homens, foi perseguida por ser quem era; fugiu e mentiu. A raiva a perseguia como fogo que se espalha e não pode ser contido. Não teria sobrevivido, mas as artes ensinadas por sua mãe a salvaram.
Também viu os horrores da peste.
Sentiu os calafrios da febre, a dor das pústulas inchadas, a náusea. Foi
abandonada pelo que restou de sua família, deixada para morrer em uma vala, no
meio mortos e moribundos. Quase foi enterrada viva, mas uma vez mais, sua arte a
salvou.
Sofreu ainda os invernos da França,
quando muitos morreram nas ruas. Uma época de miséria, de indiferença e
angústia. Viu as barricadas da rebelião se erguerem apenas para tombarem, e viu
o vento frio velar os corpos dos rebeldes. A pobreza das ruas... Aquele inverno
foi o pior de muitas décadas, os ventos tão frios quanto a indiferença dos
nobres. Mas ela sobreviveu.
Fez, então, uma viagem terrível pelo
vasto oceano, rumo a grande colônia de Portugal. Ao seu lado, bruxo como ela, o
homem de sua vida, com quem buscaria décadas mais felizes no novo mundo. O
destino é cruel, porém, e fustigado pela tempestade, seu navio quase não
resistiu às ondas. Seu amor se foi, junto com vários outros, tragados para a
escuridão sombria do mar. Foram seus cânticos que salvaram os restantes, e com
o coração em pedaços e olhos inchados, chegou a salvo às terras brasileiras.
Mas há um limite para a dor. Agora, em
uma das inúmeras favelas do Rio, à luz mortiça de quatro velas, seu espírito foi
finalmente quebrado. O rosto inchado, os cortes pelo corpo, as costelas
trincadas. Fora acusada de bruxaria por suas quatro vizinhas... Logo quando finalmente decidiu ensiná-las sua arte, as primeiras com quem compartilharia seu conhecimento desde as fogueiras da Inquisição. Ela conhecera suas mães e as vira crescer; cuidou delas e as ensinou um segredo ou outro, ela que nunca teve filhos, e a afeição por elas cresceu como há muito não se sentia. Mas as pequenas cresceram e se tornaram amargas, fingiram sua amizade e juraram segredo, para então denunciarem-na para toda a favela. Ela foi linchada, humilhada e ferida. A fé do ódio estava de volta, o discurso dos pastores era a nova peste. Ela não teria sobrevivido, deixada para morrer numa viela escura, mas, uma última vez, sua arte a protegeu.
A bruxa inicia o cântico final, e todos os quatro itens se consomem em luz etérea –
laranja, parda, cinza e azul –, que só ela pode ver, enquanto seu corpo também
se incendeia, e murcha. Sua visão turva, seus sentidos vacilam, mas em sua
mente ela ouve quatro espíritos se partindo. Sorriu. Que aprendam com ela o que
esse mundo não ensinou, que aprendam em suas novas – e agora longas – vidas. Pois
junto com suas memórias e as maldições lançadas ela lhes deu a bênção de uma
vida tão extensa quanto a dela fora. Elas sobreviveriam à sua arte, mas
sofreriam tudo que ela sofreu. Com um sorriso de dor e de vingança, a bruxa
finalmente se apagou, passando sua vida – e seu sofrimento – adiante.
Ela acorda tossindo – a casa está em chamas! Memórias de rostos que ela não conhece dançam no fogo, gritos de dor em sua mente e gritos de ódio lá fora. Queimem a bruxa! – gritam. Estão acusando-a também! Logo ela, que incentivou as amigas a denunciarem a vizinha! Logo ela que – não há tempo para pensar, o fogo tomou tudo! Não há saída, ela não vai conseguir!
Ela acorda suada, o corpo febril, bulbos de doença crescendo por toda a pele. A fraqueza a consome enquanto memórias de outra vida tomam sua visão. Rodeada de corpos, ela sofre o abandono de uma família que não a sua. E de repente ela entende, e sabe que em breve sua própria família fará o mesmo.
Ela acorda tremendo com o vento vindo da noite. Na mente, o rosto da vizinha quando jovem, pedindo esmolas, mas ninguém se importa e nunca se importará. Nesse momento ela soube, por magia, que a pobreza consumiria tudo o que ela tinha ou teria, e ela viveria na miséria ainda muito mais do que já tinha vivido até ali.
Ela acorda com o trovão. O sonho ainda vivo na mente: o navio, as ondas, a morte. Alguém morrera... Suada, ela corre para o quarto do filho. A tempestade desaba, abafando seu grito de dor ao erguer a criança sem vida. E então uma revelação sombria dança em sua mente: ela viveria muito, mas perderia – todas as vezes – aqueles que amava.
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A traição foi seu último flagelo e seu derradeiro algoz; ela está cansada das dores do mundo. Passaria seu fardo adiante, doaria suas memórias e sua longa vida para que elas vissem o terror que viu e viveu. Se o mundo é um lugar terrível, as pessoas o tornam pior.
Que sua dor servisse de aprendizado.
Nua diante da TV desligada, que fazia as vezes de espelho, ela inicia o cântico. Maldizendo o terror da perseguição, retira um galho queimado do balde diante de si e o deita à sua frente, à esquerda. Mergulha mais uma vez a mão no balde e retira agora um rato morto, invocando a dor do abandono e da doença, colocando-o à frente, à direita. Depois, retira um pedaço de cobertor velho, cantando o vazio frio da miséria, e o deposita às costas, à esquerda. Por fim, derrama o balde atrás de si, à direita, recitando a agonia da perda de alguém, e a água imunda e escura se espalha.
ᚲ
Ela acorda tossindo – a casa está em chamas! Memórias de rostos que ela não conhece dançam no fogo, gritos de dor em sua mente e gritos de ódio lá fora. Queimem a bruxa! – gritam. Estão acusando-a também! Logo ela, que incentivou as amigas a denunciarem a vizinha! Logo ela que – não há tempo para pensar, o fogo tomou tudo! Não há saída, ela não vai conseguir!
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Ela acorda suada, o corpo febril, bulbos de doença crescendo por toda a pele. A fraqueza a consome enquanto memórias de outra vida tomam sua visão. Rodeada de corpos, ela sofre o abandono de uma família que não a sua. E de repente ela entende, e sabe que em breve sua própria família fará o mesmo.
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Ela acorda tremendo com o vento vindo da noite. Na mente, o rosto da vizinha quando jovem, pedindo esmolas, mas ninguém se importa e nunca se importará. Nesse momento ela soube, por magia, que a pobreza consumiria tudo o que ela tinha ou teria, e ela viveria na miséria ainda muito mais do que já tinha vivido até ali.
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Ela acorda com o trovão. O sonho ainda vivo na mente: o navio, as ondas, a morte. Alguém morrera... Suada, ela corre para o quarto do filho. A tempestade desaba, abafando seu grito de dor ao erguer a criança sem vida. E então uma revelação sombria dança em sua mente: ela viveria muito, mas perderia – todas as vezes – aqueles que amava.
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Muito bom, Daniel. Fico honrada que meu humilde conto tenha te inspirado a algo tão incrível assim. Olha, companheira de caminhadas até vai, mas mentora é muito para mim: não mereço tanto. :)
ResponderExcluirBrilhante!
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